"ECOS DAS VOZES QUE EMUDECERAM”: MEMÓRIA ÉTICA COMO MEMÓRIA PRIMEIRA
Ricardo Timm de
Souza
Introdução
O presente texto analisa de modo breve algumas interpretações da idéia
geral de memória e de seus sentidos a partir da segunda “Tese”, de
Walter Benjamin[1].
Tal se dá a partir da articulação da letra benjaminiana com a categoria
interpretativa da Alteridade. Nosso
objetivo geral é mostrar como, desde a perspectiva da Alteridade que aparece
como tal no presente, a própria idéia de presença como representação como tem
sido cultivada ao longo dos séculos no pensamento filosófico ocidental, assume
uma outra configuração, a saber, como memória presente – memória ética – com
seus conteúdos que não significam uma seleção daquilo que do passado perdura a
partir de algum crivo crítico privado, mas que indicam, antes, uma irrupção, no
campo da presença intelectual e da organização dos dados da consciência, do estranho que a memória corporificada em apelo ético
significa. Os “ecos das vozes que emudeceram” parecem só serem plenamente vivos
– ou seja, audíveis a ouvidos não moucos – exatamente porque as vozes emudeceram, numa
inversão da naturalidade da audição, que aqui é subvertida, pois não se ouve
apenas o que se ouve, mas o que ressoa no que foi emudecido; e este emudecimento
é o núcleo da eloqüência singular que faz com que a consciência moral não
esmoreça no encalço de uma justiça para além do horizonte estreito da eqüidade e
da mera reparação[2].
A tese é que a eloqüência da memória que se faz ouvir nos ecos “das vozes que
emudeceram”, que exige audibilidade, constitui-se essencialmente como o apelo moral
imperativo e indispensável por justiça no sentido de uma loucura por justiça no sentido de
Derrida[3],
que interdita a paz a quem, em algum momento, percebeu que sua memória lógica –
ou seja, o conjunto de suas funções mnemônicas em termos biológicos, sociais,
pessoais e coletivos, depende dessa memória ética, a um tempo singular e
definitiva. A memória ética é a memória
primeira, expressão peculiar de vida da
Alteridade.
Presenças do passado para além da
representação
Revisitemos inicialmente alguns conceitos. A mania representacional do pensamento,
que não consegue lidar senão com presenças – pois, ainda que concebamos uma cena
no passado remoto, ou no futuro distante, o que vemos em imaginação é a presença de uma cena a si mesma, um
presente que, por artifício de nosso intelecto, conseguimos conceber como já
passado, mas que, ao ser re-concebido, se reapresenta como presente para si mesmo,
ainda que em era cronologicamente distante da nossa – acaba por nos condenar,
reduzidos que ficamos à lógica funcional de nosso intelecto que classifica e
organiza a realidade percebida em uma presença para si mesma (porque para nós), à condição de prisioneiros da presença como tal. O
intelecto retrai para si os tempos e sentidos, e é no presente do indicativo do
verbo ser, em todas as suas
modalidades e conjugações, que o sentido da racionalidade do real percebido como
dado de realidade se dá. Pelo mero intelecto, realizamos o sonho dos séculos;
exorcizamos o que tudo corrói, afastamos do horizonte próximo de significações o
Saturno devorador de seus filhos, corrosão do empírico: o tempo, expressão simultânea do humano e
da Alteridade[4].
Todavia, o tempo retorna de múltiplas formas, exatamente ali onde se
pensou que estava definitivamente afastado do espectro do possível. Outra não é
a história do século XX filosófico, o século da finitude – ou seja, o século da
temporalidade – senão a história da
irrupção trepidante da temporalidade nos construtos sofisticados da mais
sofisticada racionalidade herdeira proximamente dos modernos e, remota, porém
decisivamente, do logos grego como instância fundadora da racionalidade
ocidental[5].
Essa é simultaneamente a origem da crise de sentido da contemporaneidade e seu
maior desafio, que podemos traduzir, em todos os níveis, como o desafio da
Alteridade.
A seguir, vejamos como, a partir de um excerto da segunda “Tese”,
Benjamin nos permite encaminhar esta
temática.
“Alguém na terra está à nossa
espera”
Destaquemos, na segunda “Tese”, o seguinte excerto:
"...a imagem da felicidade está
indissoluvelmente ligada à da salvação. O mesmo ocorre com a imagem do passado,
que a história transforma em coisa sua. O passado traz consigo um índice
misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar
que respiramos antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos das vozes que
emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a
conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações
precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a
cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o
passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente..."[6]
Em uma herança venerável que remete
a uma tradição interpretativa grandiosa, mas que é perceptível de modo cabal na
transmissão imediata de Franz Rosenzweig[7],
Benjamin nos apresenta uma visão por assim dizer radicalmente “não-quietista” de felicidade: “...a imagem da felicidade está
indissoluvelmente ligada à da salvação”. A felicidade é indissociável da
redenção feliz do tempo realizado da justiça, da justiça em proximidade máxima,
quando o mundo se salva daquilo que o dilui, nega-se ao esquecimento e se
legitima como realidade propriamente dita, ao organizar-se em torno àquilo que o
estrutura propriamente como mundo
para além da mera espessura do ser amorfo, da quantidade, ou seja, o que dá sentido ao ser[8].
Os reflexos dessa felicidade improvável na realidade do cotidiano, na presença
que é nosso mundo intelectual, dão-se naquilo que sobra após o decaimento da
presença em sua fatuidade representativa ou representacional do instante do
acontecimento: a história: “O mesmo
ocorre com a imagem do passado, que a história transforma em coisa sua”. A história atualiza uma presença
irrepresentável: ela é essa presença do passado, materializada como
“presença não-representacional”, ou não meramente representada. Essa é a
diferença essencial entre história e historiografia, correspondente à diferença
essencial entre temporalidade e cronologia. Nada na história, nada no tempo, é
anulável. Nada poderá fazer com que uma criancinha que nasceu e viveu apenas um
dia não haja nascido; nenhum arreglo mental será capaz de suprimir o que
irrompeu na história, ou seja, no tempo, simplesmente porque o que irrompeu na
história, no tempo, é o tempo, a
história. É isso que faz com que a desconexão com o passado real não seja
possível (não o passado representável por nosso intelecto que, como vimos, é uma
função de nossa capacidade representativa), que o acontecido não possa ser
anulado e transmita à imponderabilidade do futuro o ar que traz consigo: “O passado traz consigo um índice
misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar
que respiramos antes?”. O tempo não
pára, porque a justiça não se realizou. A justiça ainda não realizada é a
memória, memória que envia ao futuro, é sua razão de ser e sua configuração
inteligível – somos nós – nós que somos elos entre universos que nunca se
encontrarão na cronologia, apenas na ética: “Se assim é, existe um encontro secreto,
marcado entre as gerações precedentes e a nossa”. Esse encontro secreto é o
trazer da memória, o trazer de nós mesmos, à vida, vida entendida como ansiedade
por justiça; secreto porque não pode correr nenhum risco de ser indecoroso,
imprudente, banal. É toda a gravidade do mundo que ali se anuncia. Real.
Mas difícil realidade. Realidade que, quanto mais próxima, mais
inabordável sem ser desnaturada, sem decair em cadeia de lembranças, em
espectros fracos. Proximidade tão próxima, que não podemos passar sem ela, e tão
distante que nunca se dá plenamente a nós. Mentalizada, permanece objeto de
nossa mente. Concebida, é caricatura de si mesma, porque simplesmente
representada. Caminho sem volta, senda sem saída?
É exatamente no cúmulo da
desesperança, do desencontro, situação-limite, que se anuncia algo que surge por
trás do desencontro e da desesperança, e apesar destes e de tudo o que
significam e podem significar: a Alteridade. “Alguém na terra está à nossa espera”.
Traz consigo a imprevisibilidade da mera espera, mas essa espera é tudo o
que pode nos salvar da tautologia de nós mesmos e das artimanhas de nossa
memória meramente intelectual, cronológica. A Alteridade, alguém, confia em nós mais do que nós mesmos
somos capazes, pois, sozinhos, somos apenas nós e nossa presença, ou seja, nossa solidão. Há a abertura de um limiar ante o qual todas as definições
caducam: o portal do desconhecido[9],
da vida de “Alguém”, que, na terra (e
não na nossa mente, ou em lugar ilocalizável), “está à nossa espera”.
Ainda: “nesse caso, como a cada geração, foi-nos
concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo.
Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente”. Negar o apelo não é possível
senão na afirmação obsessiva da presença, na cessação do tempo, o que
significaria a cessação da vida. Pois não acontecemos nem meramente passamos no
tempo, mas, primariamente – somos
tempo. Pois o que somos, em última análise, senão a expectativa temporal de encontrarmos a
nós mesmos e a nossos desejos ao longo da vida que passa? O que se apresenta de
nós aos outros senão nosso tempo passado que se dá nesse preciso instante? Como poderíamos ser o que somos, se não
fôssemos, ou seja, se já não
tivéssemos sido? O que nos constitui senão o desejo maior de ainda termos
algum tempo para que nossa existência se justifique mais e mais a nós mesmos e
aos outros? O que são nossos pulmões, senão a esperança de ter tempo para que o
ar os penetre ainda uma vez no próximo instante? Quando tempo e existência se encontram, o
resultado é o humano, apelo à vida. Parece então absolutamente claro porque
este apelo que o passado nos dirige – apelo à vida – “não pode ser rejeitado
impunemente”. Rejeitá-lo seria, simplesmente, rejeitar a vida.
Esse é, então, o sentido da memória, o que impede que
venhamos a enlouquecer com as lembranças assombrosas da angústia da justiça não
realizada; eis o Outro, que é o Tempo que nos dirige seu apelo. A memória ética,
tempo vivo, é a memória
primeira.
Referências
ADORNO, Theodor. Minima moralia, São Paulo: Ática, 1993.
BENJAMIN, W. Obras Escolhidas, São Paulo:
Brasiliense, 1985.
DERRIDA, J.
Força da Lei, São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
LEVINAS, E. Entre Nós - Ensaios sobre a Alteridade,
Petrópolis: Vozes, 1997.
ROSENZWEIG, Franz. Der Stern
der Erlösung, Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1996.
SOUZA, Ricardo Timm
de.
Totalidade & Desagregação – sobre as
fronteiras do pensamento e suas alternativas, Porto Alegre, EDIPUCRS,
1996.
______,
O tempo e a Máquina do Tempo – estudos de
filosofia e pós-modernidade, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998.
______,
Sujeito, ética e história – Levinas, o
traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental, Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1999.
______,
Existência em Decisão - uma introdução ao
pensamento de Franz Rosenzweig, São Paulo: Perspectiva, 1999.
______,
Sentido e Alteridade – Dez ensaios sobre
o pensamento de E. Levinas, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
______,
Metamorfose e Extinção – sobre Kafka e a
patologia do tempo, Caxias do Sul: EDUCS, 2000.
______,
Ainda além do medo – filosofia e
antropologia do preconceito, Porto Alegre: DaCasa-Palmarinca,
2002.
______,
Sobre a construção do sentido – o pensar
e o agir entre a vida e a filosofia, São Paulo: Perspectiva,
2003.
______,
Responsabilidade Social – uma introdução
à Ética Política para o Brasil do século XXI, Porto Alegre: Evangraf,
2003.
______,
Razões plurais – itinerários da
racionalidade ética no século XX: Adorno, Bergson, Derrida, Levinas,
Rosenzweig, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
______,
Fontes do humanismo latino - A condição
humana no pensamento filosófico moderno e contemporâneo, Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2004.
______,
Ética como fundamento – uma introdução à
ética contemporânea, São Leopoldo, Editora Nova Harmonia, 2004.
______,
Sentidos do Infinito -
A
categoria de “Infinito” nas origens da racionalidade ocidental, dos
pré-socráticos a Hegel,
Caxias do Sul: EDUCS, 2005.
______, Em torno à Diferença – aventuras da
Alteridade na complexidade da cultura contemporânea, Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008.
______, Justiça e seus termos – dignidade humana,
dignidade do mundo (no prelo).
______,“Justiça,
liberdade e Alteridade ética. Sobre a questão da radicalidade da justiça desde o
pensamento de E. Levinas”, in: VERITAS
– Revista de Filosofia, Vol. 46 n.2, junho 2001, p. 265-274.
SOUZA, Ricardo Timm de. –
FABRI, Marcelo. – FARIAS, André Brayner de. (Orgs.) Alteridade e Ética, Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2008.
[1] BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de
história”, in: BENJAMIN, W., Obras
Escolhidas, São Paulo: Brasiliense, 1985.
[2] Cf. SOUZA, R. T. Justiça e seus termos – dignidade humana,
dignidade do mundo.
[3] Cf. DERRIDA, J., Força de Lei; SOUZA, R. T., Razões plurais.
[4] Cf. SOUZA, R. T., Existência em decisão; SOUZA, R. T. Fontes do humanismo latino - A condição
humana no pensamento filosófico moderno e contemporâneo.
[5] Cf. SOUZA, R. T., Totalidade e Desagregação, p. 15-29;
SOUZA, R. T., “Da neutralização da diferença à dignidade da Alteridade: estações
de uma história multicentenária”, in: SOUZA, R. T. Sentido e
Alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de E. Levinas, p.
189-208.
[6]BENJAMIN, W., Op. cit., p. 223.
[7] ROSENZWEIG, Franz.
Der Stern der Erlösung, Frankfurt am
Main: Suhrkamp, 1996.
[8] Cf. SOUZA, R. T. Existência
em Decisão - uma introdução ao pensamento de Franz Rosenzweig; SOUZA, R.
T., “Justiça, liberdade e
alteridade ética. Sobre a questão da radicalidade da justiça desde o pensamento
de E. Levinas”, in: VERITAS – Revista
de Filosofia, Vol. 46 n.2, junho 2001, p. 265-274.
[9] Cf.
ROSENZWEIG, Franz. Der Stern der
Erlösung.
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