ÉTICA E CONHECIMENTO - A rearticulação do sentido ético-intelectual em tempos complexos
Ricardo
Timm de Souza
Introdução – da articulação possível entre o ético e o intelectual
A questão do que possa receber,
hoje, o qualificativo de racional, é
certamente das mais espinhosas. Não somente o irracionalismo parece campear em
todas as frentes, mas também - e este é o fato de fundo especialmente relevante
- os teóricos não costumam mais encontrar para o “conceito” de razão um
significante suficientemente unívoco.
Mas nem sempre foi assim. Durante
séculos, nada poderia talvez haver de mais supérfluo do que se dedicar de forma
pertinaz ao estudo e à delimitação do conceito de razão e de racionalidade e de
suas conseqüências, de tal forma óbvios pareciam ser seus parâmetros de
inteligibilidade a todo animal racional; muito mais útil se sugeria, então,
desatrelar a razão de pudores heterônomos, desvencilhá-la do que, no passado
teria se constituído em suas travas e limitações - o medo, a religião, até mesmo
a loucura. Que o iluminismo tenha seriamente sonhado com o estatuir de uma
religião da razão, tal fato pode ser compreendido como a terminação de uma longa
cadeia de pretenso “desencantamento” do mundo.
Hoje,
porém - ao longo do intenso, paradoxal e “breve século XX”[1]
e para além - a situação é totalmente diferente. Nada parece ser mais frágil do
que a identidade da razão. Os grandes delírios racionais da modernidade vão
ficando para trás e não deixam muitas saudades: não cumpriram em sua absoluta
maioria a essência do que prometeram. As críticas pertinazes de variados
intelectuais de grande lucidez, como Bergson, Adorno, Horkheimer, Benjamin - mas
também, muitos outros, de muitas outras escolas, de muitos outros lugares e
proveniências (crítica de toda uma época que faz um levantamento histórico
de si mesma) - contribuíram para que finalmente pudeste ser percebido a que
nível de precariedade eleva-se, hoje, o estatuto de racionalidade tal como
compreendido geralmente na linguagem da tradição.
Mas
não se trata de uma constatação conjunta de gênios iluminados. O que de
verdadeiro advém de suas sutis investigações alimenta-se da consciência de
situação de uma época de esgotamento,
época esta na qual temos vivido há mais de um século e que, talvez, só agora
passe a deitar seus frutos realmente maduros[2].
O
objetivo do presente texto é pontualizar algumas das dimensões fundamentais para
a compreensão mais profunda destes fatos, bem como sugerir pistas para a
compreensão das condições de possibilidade de uma racionalidade simultaneamente
plural e intrinsecamente ética: uma rearticulação sólida entre a
ética e o conhecimento.
Da diferença real à diferença lógica: a grande aventura da Razão grega
A racionalidade se apresenta, nos
alvores da filosofia ocidental, como uma extraordinária potência essencialmente
identificante[3].
Tentemos caracterizar algumas referências essenciais para a compreensão deste
fato absolutamente determinante não só em termos de pensamento, mas também em
termos da própria história do ocidente e por extensão do mundo, da nossa história - ou do que dela
resta.
A
questão que se coloca aos primeiros daqueles que passaram à história com o nome
de filósofos é clara, e essencialmente a mesma para todos: o que é a realidade? É de se destacar,
porém, que, para que pudessem ter chegado a este questionamento aparentemente
“óbvio” ou até mesmo, em sua clareza enunciativa, bastante “simples”, muitos
passos complexos tiveram de ser percorridos:
a)
Em primeiro lugar, e como condição absolutamente fundamental para todo
desenvolvimento do pensamento propriamente filosófico, é preciso “desidentificar-se” da realidade, ou
seja, perceber-se diferente dela.
Caso isso não ocorra, estamos ainda em uma etapa de indiferenciação que oblitera
qualquer tentativa de lucidez, pelo menos nos moldes “gregos” do termo: não há
luz nem sombra, mas uma indeterminação onipresente e sem cores, sem demarcação
de limites, sem possibilidade nem ao menos da percepção de uma determinada
situação desde onde se pensa e se fala. Em lugar do questionamento, haveria
apenas a pretensão da onisciência pela onipresença.
b)
Assim, a diferença é absolutamente
essencial no questionamento acima proposto: ela determina o próprio “espaço” da questão, o intervalo no qual a questão pode nascer.
E em uma generalização não de todo temerária, poderíamos dizer: a consciência
implícita ou explícita da diferença entre quem pergunta e quem (ou o que) é
perguntado é a condição primordial para a própria ocorrência do
pensamento.
c)
Uma vez dado tal fato, o problema agora é demarcar uma determinada área da
realidade a ser iluminada pelo
intelecto. Mas este não é um problema de dificílima solução – pois, desde quando
se pergunta “o que é a realidade”, ocorre a pressuposição paralela de que a
realidade como tal é já alvo desta demarcação específica – já que tal demarcação
apenas se impõe desde o momento em que se passa a tentar preencher tal questão
com algum conteúdo, seja para melhor especificá-lo, seja para considerar o
sentido deste questionamento. Assim, quem pergunta “o que é a realidade” fala
sempre desde uma posição na qual a realidade pela qual pergunta é aquela que se
lhe assume, de certo modo previamente, sentido de realidade: algo que julga
que, ao ser questionado, pode fornecer, de algum modo, uma resposta que
recompense seus esforços.
d)
Uma vez dadas tais condições prévias, tal questão – “o que é a realidade?” –
pode assumir contornos mais claros. Agora é possível sofisticar o questionamento
procurando pensar além do “meramente sensível” – procurando pela arché, pelo ser mesmo e por suas
categorias de inteligibilidade. Inicia-se agora, de forma explícita e
inequívoca, a grande tensão do pensamento filosófico: há que identificar o real, ou seja, é necessário que seja transposta a diferença
atrás referida, a qual, como vimos, é condição para o pensamento – sem, porém,
que o processo identificatório se confunda com uma identidade ingênua
pré-reflexiva, pré-filosófica. Este é o dilema de toda filosofia. Tentar
responder satisfatoriamente a esta questão tem sido a motivação de todo
pensamento de origem grega, aquele que primariamente se propõe o tema: sugestões
de como resolver a distinção entre os particulares e o universal, universal que
elucidaria o que os particulares realmente são para além de toda e qualquer mera
aparência - identificar a realidade
para além da indeterminação ou “des-identificação” do múltiplo.
A
história da filosofia ocidental é assim a história de uma longa e complexa
apropriação; o intelecto aprende a apropriar-se do que não é ele ao apropriar-se
intelectualmente daquilo a que é, por ele, atribuído valor de realidade. Do
intelecto “que é de certo modo todas as coisas” aristotélico ao intelecto que
penetra no núcleo da realidade cognoscente via correlação intencional
husserliana, o que temos é uma e mesma inspiração desdobrada de múltiplas
formas. Uma dupla consciência brota da retrospecção destes fatos:
a)
Em primeiro lugar, a tarefa intelectual é compreendida fundamental e
decisivamente com um tema do conhecimento da realidade, de sua
cognoscibilidade. Já nos primeiros estertores do pensamento identificante,
estamos muito próximos de Hegel – só o real é cognoscível, só o cognoscível é
real.
b)
Além disso, o processo para se chegar ao conhecimento consiste na anulação do
espaço que medeia entre conhecedor e conhecido, do intervalo diferencial conforme anteriormente
caracterizado.
Deste modo, é possível acompanhar as
grandes linhas de desenvolvimento da filosofia ocidental. Trata-se de um
apropriar-se da realidade pela utilização infinitamente criativa do poder
sintetizante do intelecto que tem no verbo “ser” – de algum modo, sempre no presente do
indicativo – a fonte e o destino de toda sua referência.
Interessa-nos destacar aqui um
determinado passo, absolutamente imprescindível para que tal tenha se dado como
efetivamente se deu: a sutil transmutação da diferença real – que pode, neste
contexto, ser considerada a origem de
todo e qualquer pensamento enquanto tal – em diferença lógica – origem de todo e qualquer pensamento
identificante. A distinção – ou melhor, a não-distinção clara - entre estes dois
dados de origem – que pode soar pouco importante a uma primeira leitura – é
absolutamente determinante e definirá a evolução do pensamento
ocidental por bem mais de dois mil anos. E não é inconseqüente supor que somos,
como nosso século foi, como nossa época foi e tem sido, a vítima real desta
indistinção.
Pois veio a se estabelecer uma
determinada noção de racionalidade com relação à realidade, logo entronizada
como hegemônica, para a qual a determinação da realidade como tal passa
exclusivamente por aquelas dimensões que dela podemos conhecer – “o logos do seu ser”. Filosofia seria assim problema
exclusivamente do conhecimento, e conhecimento de ser e não de aparência. Seria,
ainda antes, a determinação do ser e
do não-ser pela Razão do Ser – Razão esta estatuída em
única racionalidade concebível (e as contadas exceções significativas a esta
regra acabam por confirmá-la).
“Razão” é assim, no contexto das
presentes reflexões, a variedade de formas que o intelecto utiliza para levar a
cabo seu exercício de apropriação daquilo que se lhe apresenta, desde o ponto de
vista do conhecimento – o único a ser realmente levado a sério – como tendo
sentido de realidade. E isto sempre desde a dimensão do identificar e conhecer
que consistem finalmente num conhecer e conquistar o ente, anulando o espaço
da diferença real ao substituí-lo pelo espaço da diferença lógica, a qual,
finalmente, não necessita de espaço algum na medida em que se constitui em uma
etapa do processo identificatório da
realidade. A questão da realidade seria a questão de seu conhecimento, e seu
conhecimento por parte de uma razão solitária.
Da Razão (cindida) às racionalidades “precárias”: a “Idade da Razão”
A história segue seu curso. As
grandes promessas da razão assumem a forma da modernidade que consiste
justamente no ultrapassamento de pudores totalizantes por parte de um intelecto
poderoso. A ocorrência de questões como, talvez, o infinito cartesiano da
terceira Meditação, as considerações pascalianas e kantianas e outras exceções à
poderosa re-imanentização do sentido que ocorre após a decadência da escolástica
medieval parecem-nos, mais uma vez, assumir o status de grandiosos desvios em relação à ortodoxia em que se
constitui o pleno desenvolvimento de um determinado espírito identificante
presente nos primeiros alvores do pensamento ocidental, conforme atrás sugerido,
e que culminará em certas construções especialmente do idealismo
alemão.
A modernidade, com tudo que ela
representa: renovação de estruturas histórico-sociais, possibilidade de
inusitado avanço científico, a crença na realidade como um livro aberto pronto
para ser lido, a revalorização de cânones clássicos e descoberta de novos, esta
modernidade se configura na talvez última grande vaga “otimista” que tenhamos
tido até agora. Esta vaga otimista, que tem seus primórdios talvez nos primeiros
anúncios do renascimento, atinge seu apogeu com a crença nos ideários
iluministas/positivistas.
Percebemos, porém, de forma
inequívoca, um constante processo de falência do “ideário moderno” já a partir
de pelo menos meados do século XIX[4].
Não entraremos, no presente contexto, em detalhes a respeito do estudo de tais
dados, o que temos feito em outras ocasiões[5].
Interessa-nos, por agora, simplesmente constatações de ordem geral.
A idéia de razão que herdamos da
modernidade não é capaz de dar conta de questões que surgem hoje exatamente porque ela não foi capaz
de dar conta das grandes questões civilizatórias nem ao menos em seu próprio
tempo de maior apogeu e praticamente absoluta hegemonia. O pensamento e a
história contemporâneos apresentam algo de comum entre si e de inconfundível com
relação a qualquer outra época da civilização ocidental: a sua descrença em um
princípio único suficiente de referência. E disto não escapa nem ao menos o
alentado conceito da razão moderna. Se esta foi capaz de fornecer à ciência
formas inéditas de dominar o mundo e se desenvolver, foi na mesma medida
absolutamente incapaz de controlar a aplicação auto e heterodestrutiva de si
mesma. Quando, em uma determinada reunião, cientistas brilhantes usaram de toda
sua capacidade para desenvolver armas mortais, a Razão estava ali plenamente presente. E sua presença
cindiu definitivamente, de uma vez para sempre, a crença grega no acoplamento
necessário entre racionalidade e virtude. O que se pode observar é que nada,
senão um impulso identificatório, pretendia que estas dimensões constituíssem um
monólito indestrutível em sua coerência. Na verdade, bastam apenas alguns
episódios hediondos de uma guerra contemporânea para fazer vez mesmo a uma
modesta lucidez que um tal sonho de séculos caducou
definitivamente.
Eis, portanto, que a idéia de uma
Razão comum a todo e qualquer “ser racional” evidencia sua contradição interna –
sua incapacidade de lidar com os frutos podres dela mesma provenientes ao lado
do que se poderia pensar em termos de frutos “sadios”: seu cuidadoso avanço,
predominantemente científico, na abordagem da realidade. E a consciência desta
contradição imuniza contra uma certa idéia, cara a muitos, de que, em alguns
contados momentos da história, a razão se teria “desviado” de seus sadios
princípios e lógica – como, por exemplo, à época do nazismo. É possível perceber
nitidamente, ao contrário, que a estrita racionalidade, a meticulosidade lógica
com que foram conduzidos planos de guerra e extermínio é paradoxalmente, em sua
origem, a mesma utilizada para se
tentar e eventualmente conseguir a cura de determinada doença.
Com isto, esgota-se na
contemporaneidade o mito da “boa razão”, da reta racionalidade, não na afirmação
contrária de uma razão demoníaca travestida de boa razão, mas na pura e simples
constatação benjaminiana de que “toda obra de cultura é também uma obra de
barbárie”. O bom e o mau, o ético e o
não-ético não são questões intrínsecas à própria razão segundo o molde que nos foi
legado pelo logos iluminador desde há dois mil e quinhentos anos, mas
condições de seu exercício.
É neste sentido que a fragmentação
de um todo de sentido – a fragmentação dos resultados unificadores de uma razão
identificadora e totalizante – conduz a uma primeira constatação, expressa na
famosa máxima camusiana: “a cada razão se pode opor outra razão” – há a razão de
quem larga Little Boy sobre
Hiroshima, e a razão de quem mora em Hiroshima e não gostaria que Little Boy lhe caísse sobre a cabeça.
Esta, a primeira das constatações, talvez seja também a mais importante: ela é
absolutamente decisiva no sentido de que coloca em questão a estrutura de
certeza de que se utiliza o pensamento para se impor ao seu “outro”, àquilo que
considerará a realidade à qual se dirige e que, em fim de contas, é o alvo de
sua compulsão à identidade.
Mas ocorre ainda um outro motivo
para que esta primeira constatação seja considerada tão importante: ela envia ao
núcleo da própria questão original da diferença, e dá margem à compreensão de
que a diferença lógica – o modelo de
diferença que sanciona os avanços da razão identificante - não subsume a diferença real, mas
estabelece antes, como diria Derrida, “uma hierarquia e os termos de uma
dominação”.
Os fragmentos das certezas, os
fragmentos do sentido unívoco entre os quais a cultura contemporânea se debate,
conduzem assim à questão real. Esta questão se apresenta de forma dúplice: por
um lado, a insuficiência na manutenção de esquemas tradicionais de compreensão
de mundo e de racionalidade, pela falência de quaisquer arcabouços que os
sustentassem em meio às tempestades contemporâneas; por outro, a oportunidade de
uma reconsideração radical dos elementos mais importantes para a própria idéia
de uma racionalidade sustentável
frente aos desafios do novo século.
Pois a oportunidade que se apresenta
a quem hoje mergulha a fundo nestas questões é de enorme valor: sugere a chance
de que se perceba de certo modo o conjunto das grandes heranças do
passado. Ocorre a disponibilização de uma infinidade de elementos variados que
permitem ao observador distinguir com maior clareza as dimensões reais da
multiplicidade dos fatos, na medida em que estes fatos não mais obedecem a uma
lógica civilizatória hegemônica, mas se apresentam enquanto tais, em toda sua novidade, sem
uma lógica que os conecte e de certa forma os violente a bem de um telos redentor. A implosão de um todo
artificial de sentido dá espaço à eclosão de uma multiplicidade de sentidos – tal é
verificável tanto filosófica como empiricamente[6].
Com a falência de modelos grandiosos
de racionalidade é possível que estejamos finalmente chegando, em uma inspiração
sartreana, à Idade da Razão, à idade
em que a razão tem de reconhecer os limites de seu trofismo e reconhecer-se na
parcialidade do múltiplo – o que
somente se constituiria em desabono a uma razão delirante. Pois tudo indica que
a lucidez consiste provavelmente em escapar aos encantos e seduções de uma
totalidade tão violenta como sedutora, e antever a possibilidade permanente do
conflito. Quanto E. Levinas pergunta, ao início de uma de suas obras maiores, Totalidade e Infinito, se “a lucidez –
abertura do espírito ao verdadeiro - não consiste em antever a possibilidade
permanente da guerra”[7],
está sugerindo exatamente que as grandes Razões condescendentes e totalizantes
nem querem nem podem dar conta do que realmente interessa e é decisivo para o
pensamento que se destila não por uma sublimação da realidade, mas pelo atrito entre realidades: a vida
concreta, ou seja, a infinita multiplicidade da realidade.
A
razão totalizante parece ter dado definitivamente lugar a um inquieto conjunto
de racionalidades “precárias” (na medida em que não se completam e têm na
referência ao movimento múltiplo da
realidade seu único sentido), porém “nascentes” (porque inexploradas em seu
potencial real). Multiplicam-se os conceitos que “não se compreendem a si
mesmos” (Adorno); desencontram-se as idéias bem-acabadas de si mesmas: abre-se
todo um universo de virtualidades.
Explorar este potencial parece ser a
tarefa fundamental das novas gerações; e isto significa nem mais nem menos do
que resgatar alguns dos mais originais e importantes impulsos do pensamento:
algumas das mais decisivas capacidades humanas, entre as quais uma das maiores é
resistir à tentação de configurar uma totalidade onto-cosmológica onde todas as
questões humanas estivessem a priori resolvidas.
A racionalidade da Diferença
Este resgate acima sugerido – de
alguns dos mais primigênios moventes do pensamento - passa pela reconsideração
da questão da Diferença na ordem do pensar; mas parece só ser possível
concebê-lo em termos de um reenfoque da questão pela origem do sentido. O sentido da razão autotrófica e solitária é
ela mesma; em nome de uma imanência metodológica ela mergulha justamente em
uma solidão da qual não mais se evade[8]
– e isto vale também para grandes filósofos que, ao longo deste difícil século
XX, soergueram seu discurso em torno a um questionamento das racionalidades do
passado e pretenderam uma aproximação mais profunda do substrato ontológico da
realidade, como Heidegger[9].
À
razão autotrófica e totalizante propomos assim a alternativa de uma
racionalidade essencialmente plural, imunizada desde seu nascimento da tentação
de identificação parmenidiana-hegeliana entre ser e pensar – origem de todas as
obsessões identificatórias-totalizantes – porque definida exatamente a partir da
diferença entre ser e pensar, eclodida definitivamente desta diferença primigênia, originante.
Esta racionalidade não pode ter cunho outro que ético-estético, na medida em que
é fiel, antes de tudo, ao incontornável intervalo entre os diferentes. Poderia
eventualmente ser compreendida como uma dimensão “corretora” da lógica imanente
do pensamento.
A racionalidade da Diferença –
proposta como alternativa a uma razão solitária e obsessivamente entregue ao seu
poder identificante – eclode da irredutibilidade do múltiplo a uma lógica em que
esta multiplicidade fosse subsumida e permaneceste intelectualmente “à
disposição” das potências totalizantes-identificantes. Esta racionalidade não
pode ser reduzida a uma função do pensar (e, mais remotamente, nem a uma função
do ser!), porque o sentido de sua
estrutura está em ancorar-se exatamente na separação – na diferença – entre as
potências do pensar e a abundância do ser. A dimensão pré-original em que
consiste sua mais remota referencialidade é, ressaltemos, a multiplicidade original do real – e,
lido de outra forma, seu sentido consiste justamente na sempre ameaçada preservação desta
multiplicidade.
Porém a preservação da
multiplicidade não é nunca apenas uma questão intelectual, mas, antes, a própria
questão do sentido do uso do intelecto. Propõe-se, portanto, a exploração de uma
outra possibilidade do pensamento: uma estruturação corretiva com relação ao
impulso identificante corrente nos seus modelos “normais”.
Em
síntese, o que está realmente em jogo é a
não-alergia absoluta ao outro do pensamento, preservado em sua condição de
não-função do pensamento.
Conclusão: da lógica da Razão à racionalidade ética
“A filosofia, segundo a
única maneira pela qual
ela ainda pode ser assumida responsavelmente
em face do
desespero, seria a
tentativa de considerar todas as
coisas tais como elas se
apresentariam
a partir de si mesmas do ponto de vista da
redenção”
T. W.
ADORNO[10]
É
necessário reinventar a razão, mergulhar
nas exigências do mundo e dali extrair condições para um redimensionamento
radical do estatuto de legitimação da racionalidade, uma racionalidade que se
anuncia ousadamente plural – como
plurais são as pessoas, os grupos humanos, as infinitas formas da natureza -, sem medo da convivência com
fronteiras as mais diversas, sem temer a desinstalação que consiste em estar
situado exatamente em uma situação de
fronteiras – pois sua vocação maior não consiste em construir sua própria
segurança, mas em preservar a novidade da multiplicidade sempre renovada dos
sentidos. Uma racionalidade plural e ética, e quase poderíamos dizer: ética porque essencialmente, inequivocamente
plural, sem última palavra, mas que não vê simplesmente seu mais original
sentido em si mesma e em seus caprichos. Deste modo, talvez seja muito possível
conceber a ética e sua racionalidade própria – o respeito à diferença enquanto
diferença e a procura pelo sentido deste respeito – não mais como a pedra de
escândalo de um modelo de razão solitária em processo de inelutável falência,
mas como condição do próprio pensar sob novas condições, um pensar,
parafraseando Adorno, para quem a verdade consista em negar a injustiça, ou,
seguindo Levinas, que tenha coragem de, entre a mera verdade e a exigência da
justiça, decidir-se pela justiça.
Onde
uma determinada tradição percebe apenas decadência e “desordem”, a racionalidade
da multiplicidade encontra a oportunidade de repensar a fundo em que poderia consistir efetivamente o
sentido da realidade; e é nesta questão de não pouca importância que este
modelo de racionalidade encontra forças para encetar sua difícil aventura: a
articulação concreta entre a ética fundamental e os infinitos modos de
conhecer.
[1] Cf. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos - o breve século XX,
São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
[2]
Cf. nosso texto “O século XX e a desagregação da totalidade”, in: SOUZA, Ricardo
Timm de Souza Totalidade &
Desagregação - Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas, p.
15-29.
[3]
Cf. nosso ensaio “Da diferença lógica à dignidade da Alteridade – Estações de
uma história multicentenária”, in: SOUZA, R. T. Sentido e Alteridade – Dez ensaios sobre o
pensamento de E. Levinas, p. 189-208.
[4]
Cf. nosso texto “O século XX e a desagregação da totalidade”.
[5]
Cf. nosso livro O tempo e a Máquina do Tempo – estudos de filosofia e
pós-modernidade.
[6]
Cf. nosso texto cit. “O século XX e a desagregação da totalidade”.
[7] Totalité et Infini, Kluwer, Le Livre
de Poche, Paris, 1990, p. 5.
[8]
Cf. nosso texto citado “Da diferença lógica à dignidade da Alteridade ética –
estações de uma história multicentenária”.
[9]
Cf. nosso livro Sujeito, Ética e História
– Levinas, o traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental,
especialmente p. 22-37. Sobre a questão da diferença ontológica enquanto
elemento-chave para compreender o intento heideggeriano de solução da questão da
diferença conforme apresentada, cf. nosso texto “Husserl e Heidegger: motivações
e arqueologias” in: SOUZA, R. T. O tempo
e a Máquina do Tempo – Estudos de filosofia e pós-modernidade, p.
49-80.
[10]
Minima moralia, São Paulo, Ática,
1993, parágrafo 153, p. 215.
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