segunda-feira, 15 de abril de 2013

ÉTICA E CONHECIMENTO - A rearticulação do sentido ético-intelectual em tempos complexos

ÉTICA E CONHECIMENTO - A rearticulação do sentido ético-intelectual em tempos complexos

Ricardo Timm de Souza

Introdução – da articulação possível entre o ético e o intelectual


            A questão do que possa receber, hoje, o qualificativo de racional, é certamente das mais espinhosas. Não somente o irracionalismo parece campear em todas as frentes, mas também - e este é o fato de fundo especialmente relevante - os teóricos não costumam mais encontrar para o “conceito” de razão um significante suficientemente unívoco.
            Mas nem sempre foi assim. Durante séculos, nada poderia talvez haver de mais supérfluo do que se dedicar de forma pertinaz ao estudo e à delimitação do conceito de razão e de racionalidade e de suas conseqüências, de tal forma óbvios pareciam ser seus parâmetros de inteligibilidade a todo animal racional; muito mais útil se sugeria, então, desatrelar a razão de pudores heterônomos, desvencilhá-la do que, no passado teria se constituído em suas travas e limitações - o medo, a religião, até mesmo a loucura. Que o iluminismo tenha seriamente sonhado com o estatuir de uma religião da razão, tal fato pode ser compreendido como a terminação de uma longa cadeia de pretenso “desencantamento” do mundo.
Hoje, porém - ao longo do intenso, paradoxal e “breve século XX”[1] e para além - a situação é totalmente diferente. Nada parece ser mais frágil do que a identidade da razão. Os grandes delírios racionais da modernidade vão ficando para trás e não deixam muitas saudades: não cumpriram em sua absoluta maioria a essência do que prometeram. As críticas pertinazes de variados intelectuais de grande lucidez, como Bergson, Adorno, Horkheimer, Benjamin - mas também, muitos outros, de muitas outras escolas, de muitos outros lugares e proveniências (crítica de toda uma época que faz um levantamento histórico de si mesma) - contribuíram para que finalmente pudeste ser percebido a que nível de precariedade eleva-se, hoje, o estatuto de racionalidade tal como compreendido geralmente na linguagem da tradição.
Mas não se trata de uma constatação conjunta de gênios iluminados. O que de verdadeiro advém de suas sutis investigações alimenta-se da consciência de situação de uma época de esgotamento, época esta na qual temos vivido há mais de um século e que, talvez, só agora passe a deitar seus frutos realmente maduros[2].
O objetivo do presente texto é pontualizar algumas das dimensões fundamentais para a compreensão mais profunda destes fatos, bem como sugerir pistas para a compreensão das condições de possibilidade de uma racionalidade simultaneamente plural e intrinsecamente ética: uma rearticulação sólida entre a ética e o conhecimento.


Da diferença real à diferença lógica: a grande aventura da Razão grega


            A racionalidade se apresenta, nos alvores da filosofia ocidental, como uma extraordinária potência essencialmente identificante[3]. Tentemos caracterizar algumas referências essenciais para a compreensão deste fato absolutamente determinante não só em termos de pensamento, mas também em termos da própria história do ocidente e por extensão do mundo, da nossa história - ou do que dela resta.
A questão que se coloca aos primeiros daqueles que passaram à história com o nome de filósofos é clara, e essencialmente a mesma para todos: o que é a realidade? É de se destacar, porém, que, para que pudessem ter chegado a este questionamento aparentemente “óbvio” ou até mesmo, em sua clareza enunciativa, bastante “simples”, muitos passos complexos tiveram de ser percorridos:
a) Em primeiro lugar, e como condição absolutamente fundamental para todo desenvolvimento do pensamento propriamente filosófico, é preciso “desidentificar-se” da realidade, ou seja, perceber-se diferente dela. Caso isso não ocorra, estamos ainda em uma etapa de indiferenciação que oblitera qualquer tentativa de lucidez, pelo menos nos moldes “gregos” do termo: não há luz nem sombra, mas uma indeterminação onipresente e sem cores, sem demarcação de limites, sem possibilidade nem ao menos da percepção de uma determinada situação desde onde se pensa e se fala. Em lugar do questionamento, haveria apenas a pretensão da onisciência pela onipresença.
b) Assim, a diferença é absolutamente essencial no questionamento acima proposto: ela determina o próprio “espaço” da questão, o intervalo no qual a questão pode nascer. E em uma generalização não de todo temerária, poderíamos dizer: a consciência implícita ou explícita da diferença entre quem pergunta e quem (ou o que) é perguntado é a condição primordial para a própria ocorrência do pensamento.
c) Uma vez dado tal fato, o problema agora é demarcar uma determinada área da realidade a ser iluminada pelo intelecto. Mas este não é um problema de dificílima solução – pois, desde quando se pergunta “o que é a realidade”, ocorre a pressuposição paralela de que a realidade como tal é já alvo desta demarcação específica – já que tal demarcação apenas se impõe desde o momento em que se passa a tentar preencher tal questão com algum conteúdo, seja para melhor especificá-lo, seja para considerar o sentido deste questionamento. Assim, quem pergunta “o que é a realidade” fala sempre desde uma posição na qual a realidade pela qual pergunta é aquela que se lhe assume, de certo modo previamente, sentido de realidade: algo que julga que, ao ser questionado, pode fornecer, de algum modo, uma resposta que recompense seus esforços.
d) Uma vez dadas tais condições prévias, tal questão – “o que é a realidade?” – pode assumir contornos mais claros. Agora é possível sofisticar o questionamento procurando pensar além do “meramente sensível” – procurando pela arché, pelo ser mesmo e por suas categorias de inteligibilidade. Inicia-se agora, de forma explícita e inequívoca, a grande tensão do pensamento filosófico: há que identificar o real, ou seja, é necessário que seja transposta a diferença atrás referida, a qual, como vimos, é condição para o pensamento – sem, porém, que o processo identificatório se confunda com uma identidade ingênua pré-reflexiva, pré-filosófica. Este é o dilema de toda filosofia. Tentar responder satisfatoriamente a esta questão tem sido a motivação de todo pensamento de origem grega, aquele que primariamente se propõe o tema: sugestões de como resolver a distinção entre os particulares e o universal, universal que elucidaria o que os particulares realmente são para além de toda e qualquer mera aparência - identificar a realidade para além da indeterminação ou “des-identificação” do múltiplo.
A história da filosofia ocidental é assim a história de uma longa e complexa apropriação; o intelecto aprende a apropriar-se do que não é ele ao apropriar-se intelectualmente daquilo a que é, por ele, atribuído valor de realidade. Do intelecto “que é de certo modo todas as coisas” aristotélico ao intelecto que penetra no núcleo da realidade cognoscente via correlação intencional husserliana, o que temos é uma e mesma inspiração desdobrada de múltiplas formas. Uma dupla consciência brota da retrospecção destes fatos:
a) Em primeiro lugar, a tarefa intelectual é compreendida fundamental e decisivamente com um tema do conhecimento da realidade, de sua cognoscibilidade. Já nos primeiros estertores do pensamento identificante, estamos muito próximos de Hegel – só o real é cognoscível, só o cognoscível é real.
b) Além disso, o processo para se chegar ao conhecimento consiste na anulação do espaço que medeia entre conhecedor e conhecido, do intervalo diferencial conforme anteriormente caracterizado.
            Deste modo, é possível acompanhar as grandes linhas de desenvolvimento da filosofia ocidental. Trata-se de um apropriar-se da realidade pela utilização infinitamente criativa do poder sintetizante do intelecto que tem no verbo “ser” – de algum modo, sempre no presente do indicativo – a fonte e o destino de toda sua referência.
            Interessa-nos destacar aqui um determinado passo, absolutamente imprescindível para que tal tenha se dado como efetivamente se deu: a sutil transmutação da diferença real – que pode, neste contexto, ser considerada a origem de todo e qualquer pensamento enquanto tal – em diferença lógica – origem de todo e qualquer pensamento identificante. A distinção – ou melhor, a não-distinção clara - entre estes dois dados de origem – que pode soar pouco importante a uma primeira leitura – é absolutamente determinante e definirá a evolução do pensamento ocidental por bem mais de dois mil anos. E não é inconseqüente supor que somos, como nosso século foi, como nossa época foi e tem sido, a vítima real desta indistinção.
            Pois veio a se estabelecer uma determinada noção de racionalidade com relação à realidade, logo entronizada como hegemônica, para a qual a determinação da realidade como tal passa exclusivamente por aquelas dimensões que dela podemos conhecer – “o logos do seu ser”. Filosofia seria assim problema exclusivamente do conhecimento, e conhecimento de ser e não de aparência. Seria, ainda antes, a determinação do ser e do não-ser pela Razão do Ser – Razão esta estatuída em única racionalidade concebível (e as contadas exceções significativas a esta regra acabam por confirmá-la).
            “Razão” é assim, no contexto das presentes reflexões, a variedade de formas que o intelecto utiliza para levar a cabo seu exercício de apropriação daquilo que se lhe apresenta, desde o ponto de vista do conhecimento – o único a ser realmente levado a sério – como tendo sentido de realidade. E isto sempre desde a dimensão do identificar e conhecer que consistem finalmente num conhecer e conquistar o ente, anulando o espaço da diferença real ao substituí-lo pelo espaço da diferença lógica, a qual, finalmente, não necessita de espaço algum na medida em que se constitui em uma etapa do processo identificatório da realidade. A questão da realidade seria a questão de seu conhecimento, e seu conhecimento por parte de uma razão solitária.


Da Razão (cindida) às racionalidades “precárias”: a “Idade da Razão”


            A história segue seu curso. As grandes promessas da razão assumem a forma da modernidade que consiste justamente no ultrapassamento de pudores totalizantes por parte de um intelecto poderoso. A ocorrência de questões como, talvez, o infinito cartesiano da terceira Meditação, as considerações pascalianas e kantianas e outras exceções à poderosa re-imanentização do sentido que ocorre após a decadência da escolástica medieval parecem-nos, mais uma vez, assumir o status de grandiosos desvios em relação à ortodoxia em que se constitui o pleno desenvolvimento de um determinado espírito identificante presente nos primeiros alvores do pensamento ocidental, conforme atrás sugerido, e que culminará em certas construções especialmente do idealismo alemão.
            A modernidade, com tudo que ela representa: renovação de estruturas histórico-sociais, possibilidade de inusitado avanço científico, a crença na realidade como um livro aberto pronto para ser lido, a revalorização de cânones clássicos e descoberta de novos, esta modernidade se configura na talvez última grande vaga “otimista” que tenhamos tido até agora. Esta vaga otimista, que tem seus primórdios talvez nos primeiros anúncios do renascimento, atinge seu apogeu com a crença nos ideários iluministas/positivistas. 
            Percebemos, porém, de forma inequívoca, um constante processo de falência do “ideário moderno” já a partir de pelo menos meados do século XIX[4]. Não entraremos, no presente contexto, em detalhes a respeito do estudo de tais dados, o que temos feito em outras ocasiões[5]. Interessa-nos, por agora, simplesmente constatações de ordem geral.
            A idéia de razão que herdamos da modernidade não é capaz de dar conta de questões que surgem hoje exatamente porque ela não foi capaz de dar conta das grandes questões civilizatórias nem ao menos em seu próprio tempo de maior apogeu e praticamente absoluta hegemonia. O pensamento e a história contemporâneos apresentam algo de comum entre si e de inconfundível com relação a qualquer outra época da civilização ocidental: a sua descrença em um princípio único suficiente de referência. E disto não escapa nem ao menos o alentado conceito da razão moderna. Se esta foi capaz de fornecer à ciência formas inéditas de dominar o mundo e se desenvolver, foi na mesma medida absolutamente incapaz de controlar a aplicação auto e heterodestrutiva de si mesma. Quando, em uma determinada reunião, cientistas brilhantes usaram de toda sua capacidade para desenvolver armas mortais, a Razão estava ali plenamente presente. E sua presença cindiu definitivamente, de uma vez para sempre, a crença grega no acoplamento necessário entre racionalidade e virtude. O que se pode observar é que nada, senão um impulso identificatório, pretendia que estas dimensões constituíssem um monólito indestrutível em sua coerência. Na verdade, bastam apenas alguns episódios hediondos de uma guerra contemporânea para fazer vez mesmo a uma modesta lucidez que um tal sonho de séculos caducou definitivamente.
            Eis, portanto, que a idéia de uma Razão comum a todo e qualquer “ser racional” evidencia sua contradição interna – sua incapacidade de lidar com os frutos podres dela mesma provenientes ao lado do que se poderia pensar em termos de frutos “sadios”: seu cuidadoso avanço, predominantemente científico, na abordagem da realidade. E a consciência desta contradição imuniza contra uma certa idéia, cara a muitos, de que, em alguns contados momentos da história, a razão se teria “desviado” de seus sadios princípios e lógica – como, por exemplo, à época do nazismo. É possível perceber nitidamente, ao contrário, que a estrita racionalidade, a meticulosidade lógica com que foram conduzidos planos de guerra e extermínio é paradoxalmente, em sua origem, a mesma utilizada para se tentar e eventualmente conseguir a cura de determinada doença.
            Com isto, esgota-se na contemporaneidade o mito da “boa razão”, da reta racionalidade, não na afirmação contrária de uma razão demoníaca travestida de boa razão, mas na pura e simples constatação benjaminiana de que “toda obra de cultura é também uma obra de barbárie”. O bom e o mau, o ético e o não-ético não são questões intrínsecas à própria razão segundo o molde que nos foi legado pelo logos iluminador desde há dois mil e quinhentos anos, mas condições de seu exercício.
            É neste sentido que a fragmentação de um todo de sentido – a fragmentação dos resultados unificadores de uma razão identificadora e totalizante – conduz a uma primeira constatação, expressa na famosa máxima camusiana: “a cada razão se pode opor outra razão” – há a razão de quem larga Little Boy sobre Hiroshima, e a razão de quem mora em Hiroshima e não gostaria que Little Boy lhe caísse sobre a cabeça. Esta, a primeira das constatações, talvez seja também a mais importante: ela é absolutamente decisiva no sentido de que coloca em questão a estrutura de certeza de que se utiliza o pensamento para se impor ao seu “outro”, àquilo que considerará a realidade à qual se dirige e que, em fim de contas, é o alvo de sua compulsão à identidade.
            Mas ocorre ainda um outro motivo para que esta primeira constatação seja considerada tão importante: ela envia ao núcleo da própria questão original da diferença, e dá margem à compreensão de que a diferença lógica – o modelo de diferença que sanciona os avanços da razão identificante - não subsume a diferença real, mas estabelece antes, como diria Derrida, “uma hierarquia e os termos de uma dominação”.
            Os fragmentos das certezas, os fragmentos do sentido unívoco entre os quais a cultura contemporânea se debate, conduzem assim à questão real. Esta questão se apresenta de forma dúplice: por um lado, a insuficiência na manutenção de esquemas tradicionais de compreensão de mundo e de racionalidade, pela falência de quaisquer arcabouços que os sustentassem em meio às tempestades contemporâneas; por outro, a oportunidade de uma reconsideração radical dos elementos mais importantes para a própria idéia de uma racionalidade sustentável frente aos desafios do novo século.
            Pois a oportunidade que se apresenta a quem hoje mergulha a fundo nestas questões é de enorme valor: sugere a chance de que se perceba de certo modo o conjunto das grandes heranças do passado. Ocorre a disponibilização de uma infinidade de elementos variados que permitem ao observador distinguir com maior clareza as dimensões reais da multiplicidade dos fatos, na medida em que estes fatos não mais obedecem a uma lógica civilizatória hegemônica, mas se apresentam enquanto tais, em toda sua novidade, sem uma lógica que os conecte e de certa forma os violente a bem de um telos redentor. A implosão de um todo artificial de sentido dá espaço à eclosão de uma multiplicidade de sentidos – tal é verificável tanto filosófica como empiricamente[6].
            Com a falência de modelos grandiosos de racionalidade é possível que estejamos finalmente chegando, em uma inspiração sartreana, à Idade da Razão, à idade em que a razão tem de reconhecer os limites de seu trofismo e reconhecer-se na parcialidade do múltiplo – o que somente se constituiria em desabono a uma razão delirante. Pois tudo indica que a lucidez consiste provavelmente em escapar aos encantos e seduções de uma totalidade tão violenta como sedutora, e antever a possibilidade permanente do conflito. Quanto E. Levinas pergunta, ao início de uma de suas obras maiores, Totalidade e Infinito, se “a lucidez – abertura do espírito ao verdadeiro - não consiste em antever a possibilidade permanente da guerra”[7], está sugerindo exatamente que as grandes Razões condescendentes e totalizantes nem querem nem podem dar conta do que realmente interessa e é decisivo para o pensamento que se destila não por uma sublimação da realidade, mas pelo atrito entre realidades: a vida concreta, ou seja, a infinita multiplicidade da realidade.
A razão totalizante parece ter dado definitivamente lugar a um inquieto conjunto de racionalidades “precárias” (na medida em que não se completam e têm na referência ao movimento múltiplo da realidade seu único sentido), porém “nascentes” (porque inexploradas em seu potencial real). Multiplicam-se os conceitos que “não se compreendem a si mesmos” (Adorno); desencontram-se as idéias bem-acabadas de si mesmas: abre-se todo um universo de virtualidades.
            Explorar este potencial parece ser a tarefa fundamental das novas gerações; e isto significa nem mais nem menos do que resgatar alguns dos mais originais e importantes impulsos do pensamento: algumas das mais decisivas capacidades humanas, entre as quais uma das maiores é resistir à tentação de configurar uma totalidade onto-cosmológica onde todas as questões humanas estivessem a priori resolvidas.


A racionalidade da Diferença


            Este resgate acima sugerido – de alguns dos mais primigênios moventes do pensamento - passa pela reconsideração da questão da Diferença na ordem do pensar; mas parece só ser possível concebê-lo em termos de um reenfoque da questão pela origem do sentido. O sentido da razão autotrófica e solitária é ela mesma; em nome de uma imanência metodológica ela mergulha justamente em uma solidão da qual não mais se evade[8] – e isto vale também para grandes filósofos que, ao longo deste difícil século XX, soergueram seu discurso em torno a um questionamento das racionalidades do passado e pretenderam uma aproximação mais profunda do substrato ontológico da realidade, como Heidegger[9].
À razão autotrófica e totalizante propomos assim a alternativa de uma racionalidade essencialmente plural, imunizada desde seu nascimento da tentação de identificação parmenidiana-hegeliana entre ser e pensar – origem de todas as obsessões identificatórias-totalizantes – porque definida exatamente a partir da diferença entre ser e pensar, eclodida definitivamente desta diferença primigênia, originante. Esta racionalidade não pode ter cunho outro que ético-estético, na medida em que é fiel, antes de tudo, ao incontornável intervalo entre os diferentes. Poderia eventualmente ser compreendida como uma dimensão “corretora” da lógica imanente do pensamento.
            A racionalidade da Diferença – proposta como alternativa a uma razão solitária e obsessivamente entregue ao seu poder identificante – eclode da irredutibilidade do múltiplo a uma lógica em que esta multiplicidade fosse subsumida e permaneceste intelectualmente “à disposição” das potências totalizantes-identificantes. Esta racionalidade não pode ser reduzida a uma função do pensar (e, mais remotamente, nem a uma função do ser!), porque o sentido de sua estrutura está em ancorar-se exatamente na separação – na diferença – entre as potências do pensar e a abundância do ser. A dimensão pré-original em que consiste sua mais remota referencialidade é, ressaltemos, a multiplicidade original do real – e, lido de outra forma, seu sentido consiste justamente na sempre ameaçada preservação desta multiplicidade.
            Porém a preservação da multiplicidade não é nunca apenas uma questão intelectual, mas, antes, a própria questão do sentido do uso do intelecto. Propõe-se, portanto, a exploração de uma outra possibilidade do pensamento: uma estruturação corretiva com relação ao impulso identificante corrente nos seus modelos “normais”.
Em síntese, o que está realmente em jogo é a não-alergia absoluta ao outro do pensamento, preservado em sua condição de não-função do pensamento.


Conclusão: da lógica da Razão à racionalidade ética


“A filosofia, segundo a única maneira pela qual
 ela ainda pode ser assumida responsavelmente em face do
desespero, seria a tentativa de considerar todas as
 coisas tais como elas se apresentariam
 a partir de si mesmas do ponto de vista da redenção”
T. W. ADORNO[10]

É necessário reinventar a razão, mergulhar nas exigências do mundo e dali extrair condições para um redimensionamento radical do estatuto de legitimação da racionalidade, uma racionalidade que se anuncia ousadamente plural – como plurais são as pessoas, os grupos humanos, as infinitas formas da natureza -, sem medo da convivência com fronteiras as mais diversas, sem temer a desinstalação que consiste em estar situado exatamente em uma situação de fronteiras – pois sua vocação maior não consiste em construir sua própria segurança, mas em preservar a novidade da multiplicidade sempre renovada dos sentidos. Uma racionalidade plural e ética, e quase poderíamos dizer: ética porque essencialmente, inequivocamente plural, sem última palavra, mas que não vê simplesmente seu mais original sentido em si mesma e em seus caprichos. Deste modo, talvez seja muito possível conceber a ética e sua racionalidade própria – o respeito à diferença enquanto diferença e a procura pelo sentido deste respeito – não mais como a pedra de escândalo de um modelo de razão solitária em processo de inelutável falência, mas como condição do próprio pensar sob novas condições, um pensar, parafraseando Adorno, para quem a verdade consista em negar a injustiça, ou, seguindo Levinas, que tenha coragem de, entre a mera verdade e a exigência da justiça, decidir-se pela justiça.
Onde uma determinada tradição percebe apenas decadência e “desordem”, a racionalidade da multiplicidade encontra a oportunidade de repensar a fundo em que poderia consistir efetivamente o sentido da realidade; e é nesta questão de não pouca importância que este modelo de racionalidade encontra forças para encetar sua difícil aventura: a articulação concreta entre a ética fundamental e os infinitos modos de conhecer.



[1] Cf. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos - o breve século XX, São Paulo, Companhia das Letras, 1995.
[2] Cf. nosso texto “O século XX e a desagregação da totalidade”, in: SOUZA, Ricardo Timm de Souza Totalidade & Desagregação - Sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas, p. 15-29.
[3] Cf. nosso ensaio “Da diferença lógica à dignidade da Alteridade – Estações de uma história multicentenária”, in: SOUZA, R. T. Sentido e Alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de E. Levinas, p. 189-208.
[4] Cf. nosso texto “O século XX e a desagregação da totalidade”.
[5] Cf. nosso livro O tempo e a Máquina do Tempo – estudos de filosofia e pós-modernidade.
[6] Cf. nosso texto cit. “O século XX e a desagregação da totalidade”.
[7] Totalité et Infini, Kluwer, Le Livre de Poche, Paris, 1990, p. 5.
[8] Cf. nosso texto citado “Da diferença lógica à dignidade da Alteridade ética – estações de uma história multicentenária”.
[9] Cf. nosso livro Sujeito, Ética e História – Levinas, o traumatismo infinito e a crítica da filosofia ocidental, especialmente p. 22-37. Sobre a questão da diferença ontológica enquanto elemento-chave para compreender o intento heideggeriano de solução da questão da diferença conforme apresentada, cf. nosso texto “Husserl e Heidegger: motivações e arqueologias” in: SOUZA, R. T. O tempo e a Máquina do Tempo – Estudos de filosofia e pós-modernidade, p. 49-80.
[10] Minima moralia, São Paulo, Ática, 1993, parágrafo 153, p. 215.

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