ENCONTRO ÉTICO E CUIDADO DE
SAÚDE
Ricardo Timm de
Souza
Que o verdadeiro
pensamento filosófico de todas as eras tenha sido amiúde definido como meditatio mortis, tal não é
absolutamente de se estranhar, dado o fato de que a filosofia propriamente dada
nasce da consciência da finitude que nos habita – “desde que nascemos, somos
suficientemente velhos para morrer” –, e que será percebida, ao mais tardar, na
antevisão imediata de nossa própria morte. Que, por outro lado, o ser humano ao
longo da História e de todas as histórias tenha sido capaz de articular
continuamente rotas intelectuais de fuga de tal consciência, isso igualmente não
é de se estranhar, pois, pelo menos na linha hegemônica de pensamento do
Ocidente, caracterizada desde suas origens logocêntricas e, especialmente, após
o advento de iluminismos e positivismos de todos os teores, por um otimismo
desenfreado que culmina na pretensa onipotência da tecnociência, a morte – ou, o
que dá no mesmo, a temporalidade – é o grande inimigo a ser exorcizado. Não se
percebe geralmente o anverso da medalha: a finitude, a temporalidade, como
extraordinária oportunidade de criação ética, de encontro – aliás, a única
criação à qual temos acesso, pois todo o demais que possamos fazer consiste em,
demiurgicamente, transformarmos o antigo em novo. Mas o encontro verdadeiro, o
encontro ético, a Alteridade que me chega desde além de minhas representações,
oportuniza a criação de algo que em
nenhuma hipótese poderia ter sido, a rigor, previsto: um mundo novo. O filho que
desestabiliza o equilíbrio de um
casal, este querido incômodo terceiro que se intromete na existência de uma
dupla; o amigo que, com sua chegada inesperada, desorganiza nossos planos
bem-arranjados; o desconhecido que, vindo de além de nossas representações, qual
um bebê abandonado à nossa porta, traumatiza nossa segurança: todos têm em
comum o fato de oportunizarem, no paradoxo de sua relativa insignificância em
meio ao mundo da retórica do grandioso, um verdadeiro mundo novo, o mundo da
relação ética com a Alteridade, através de um verdadeiro encontro. E também o paciente
para o cuidador de saúde. Também ele escapa, por sua presença, a qualquer
classificação prévia que algum laudo ou prontuário poderia prometer; presença simultaneamente esperável e
incômoda, é em si mesmo a expectativa de que algo aconteça para além da
obviedade maquínica de um protocolo de tratamento, a saber: um encontro
humano.
Refletir profundamente
esta situação, desde a filosofia que nunca é apenas teórica e que se cruza com a
vida prática que nunca é apenas prática, é postar-se exatamente a partir da situação-limite da
esperança – ou seja, da desesperança que, depressivamente, assoma das
profundidades da mortalidade de todos nós –; aí nasce e cresce a possibilidade
de uma insuspeitada expectativa de criação, uma outra ordem de esperança: reencontrar eticamente o humano entre os destroços
da técnica falhada e a corrosão biológica dos corpos e da dor. É aí, em meio à
aparente irremissível ruína de todo otimismo, que se insinua, pela coragem de cuidado e cuidador se
encontrarem, o nunca-antes-expectado: o encontro ético. A verdadeira ars curandi encontra as fímbrias
entrelaçadas de almas dilaceradas, uma, por sua finitude inelutável, outra, por
sua impotência opressiva – e, não obstante, acontece algo novo, im-previsto em
meio a todas as previsões: a criação de
um sentido de encontro. Há que se demonstrar como esta não é apenas uma
dimensão possível das surdas tempestades do embate final, mas o fulgor de uma
estranha aurora – responsabilidade irrestrita – que entremeia de estranhas luzes
os vales de sombra. A humanidade se reencontra no mais profundo de si mesma,
pois, a deparar-se com a situação-limite de sua própria existência, cria sentido
para toda uma existência que encontra outra existência, e rompe
definitivamente com a solidão.
Tema para pensadores curiosos,
cuidadosos, ávidos, críticos: o mundo, sufocado em tautologias, já não suporta
discursos tecnicistas de quietismo hipócrita, mas exige focos energéticos novos,
pontuais, que se dêem em momentos decisivos – e decisivos são os todos
momentos que, em carreira ininterrupta, ocupam o breve longo espaço ético entre
nossa vida e nossa morte.
Porto Alegre, 28 de
setembro de 2009.
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