INTEGRIDADE ÉTICA E
CIENTÍFICA DA PESQUISA
Três dimensões de sua condição de
possibilidade
Ricardo Timm de Souza
I - Introdução
A palavra “ética” tem se tornado,
especialmente desde meados da última década do século XX e ao longo desse século
XXI que inicia, mais e mais presente. Como se correspondesse à emergência
inesperada, na superfície da terra, de veios e rachaduras por onde flui a fumaça
oriunda das profundidades, anunciando uma erupção de um vulcão distante ou
aparentemente extinto, a palavra “ética” se insinua em discussões as mais
diversas, irrompe no corpo dos discursos, faz-se presente, de forma muitas vezes
incômoda, em documentos, manifestos, estudos e libelos os mais variados, que
pretendem desenvolver linhas de desenvolvimento de instituições, programas,
eventos da mais diversa ordem – especialmente em termos educacionais, jurídicos,
científicos e tecnológicos. Tornou-se não só adequado e pertinente introduzir o
termo “ética” nos mais variados meios e contextos, como estar algo mais
aprofundadamente o seu real significado nas diversas escolas filosóficas, o que
garantiria, em tese, uma espécie de chancela legitimante da qualidade e das
pretensões dos discursos.
Isso, porém, não significa
absolutamente que haja um domínio social mínimo dos níveis semânticos
elementares desta que é, na sua origem e essência, uma disciplina filosófica de
grande complexidade e longa evolução. Pois o fato é que se fala de “ética”,
geralmente, com uma espécie de confiança subliminar em uma pretensa potência
auto-explicativa dessa categoria. E esta confiança não advém, na quase
generalidade das vezes, de uma consciência dos sentidos diversos desse termo, ou
de sua gravidade; ela aparece como uma espécie de resposta a uma difusa
consciência de uma exigência social ampla, de muito difícil compreensão, mas que
se articula com a especificidade dos tempos que ora vivemos – tempos de fronteiras em todos os sentidos[1].
Ora, não se pode, evidentemente, nem
ao menos abordar o tema da pesquisa cientificamente relevante, adequada, sem que
as condições de sua integridade sejam explicitados com clareza. E, naturalmente,
a condição ética da pesquisa é
determinante para a sua integridade, em qualquer sentido desse termo.
A seguir, examinaremos de modo
conciso e sumário três dimensões de possibilidade da integriodade da pesquisa a
partir de sua origem – da motivação que lhe deu origem – a qual, por óbvio, como
tudo que é humano, não pode ser senão ética. Tais dimensões – cuja
argumentação de base, obviamente, não é viável desenvolver nos limites desse
texto – serão para os fins desse escrito, apresentadas como “postulados”.
II – Ética como condição de concepção de
uma vida propriamente humana
Esta referida não-consciência
suficiente das implicações e sentidos, não apenas filosóficos, da categoria
“ética”, traz consigo perigos consideráveis; perigos de generalização
inconseqüente, ou, o que é mais grave, de banalização ou manipulação conceitual.
É necessário, portanto, que se repensem continuamente as dimensões realmente
significativas do termo “ética”. O presente texto insere-se nessa linha de
argumentação: é necessário reconsiderar continuamente os significados do termo
“ética”, para que se possa encontrar, a cada momento, o equilíbrio máximo entre
o rigor teórico e a disponibilidade responsável do conceito. E este é, também, o
objetivo maior deste texto: manter a argumentação no ponto possível de
equilíbrio entre a fundamentação teórica mais rigorosa possível – ainda que não
explícita no discurso – e a acessibilidade responsável que viabilize a
utilização intersubjetiva do termo “ética” de forma filosoficamente sólida e
defensável por não-especialistas, especialmente no que concerne à pesquisa
científica íntegra.
A Ética não é um elemento a mais a
ser levado em consideração quando se pensa sobre a questão filosófica
fundamental: a condição humana. Em verdade, a Ética é o fundamento da própria possibilidade de pensar o
humano. Essa afirmação pode parecer estranha à primeira vista, mas esta
estranheza se desfaz muito rapidamente, quando os termos definidores da questão
são examinados com propriedade filosófica. Pois a própria idéia de pensar
pressupõe a Ética. Não existe pensamento fora de alguém que pensa, e esse alguém
não é uma mônada fechada em si mesma, mas, de algum modo, o fruto das relações –
seja no âmbito de sua gênese biológica (ninguém nasce senão de seus pais), seja
em termos de sua geração social e histórica (ninguém existe fora de uma cultura
e de uma língua que o acolhem, ou fora de estruturas materiais que o sustentam).
Ser humano é provir e viver na multiplicidade do humano, e aí, na teia de
relações, sobreviver. E não qualquer multiplicidade, mas multiplicidade
qualificada ou, exatamente, em termos filosóficos, multiplicidade ética, do agir de uns com relação aos
outros e dos sentidos deste agir. Pois, para que a gestação tenha chegado a um
bom termo, é necessário que nem nossa
mãe, nem todos os que a apoiaram, houvessem agido de forma má, pelo menos não a ponto de impedir
nosso desenvolvimento. O mesmo se dá, evidentemente, em cada um dos momentos de
nossa vida, não apenas daqueles por nós facilmente percebidos como decisivos ou
extremamente importantes, mas igualmente naqueles, aparentemente coloquiais,
aparentemente irrelevantes, que constituem propriamente o dia-a-dia de nossa
vida, a teia dos momentos na qual vivemos em nossa cotidianidade. Em suma: em
todos os momentos de nossa vida, define-se em cada situação a continuidade de
nossa existência, não através de atos indiferentes ou pretensamente “neutros”,
mas na especificidade única e não-neutra de cada ato. Um ato qualquer, isolado,
pode tanto fazer viver como fazer morrer; embora tal fato seja claramente
perceptível nos grandes instantes decisivos da vida, onde a vida e a morte se
encontram – tanto um ato heróico de sacrifício por outrem como um ato que mata
outrem, tanto uma intervenção cirúrgica bem sucedida como a destruição de
aspectos da vida – na verdade tal fato se dá, de um modo ou de outro, em todo e
cada um dos instantes da existência. Não há instante isolado, neutro ou
indiferente para a vida; há apenas instantes que conspiram, ou para a
continuação e promoção da vida, ou para sua corrosão e destruição. E isto por um
motivo muito simples: o ser humano é um
ser não-neutro por excelência. Essa não-neutralidade é simultaneamente, em
termos filosóficos, o resultado da reflexão original sobre a condição humana e a possibilidade de tal reflexão.
Ética é, assim, o fundamento da condição humana que vive e
medita sobre si, sobre seu lugar,
sobre sua casa, seu oikos, suas relações, seu mundo; ética é, neste sentido,
essencialmente, uma questão eco-lógica. E, assim sendo, ética é o
fundamento de todas as especificidades do viver, em suas mais complexas relações
e derivações, da história das comunidades e da própria filosofia. E,
evidentemente, para o que aqui é relevante, emerge ao natural o primeiro
postulado de nossa argumentação: a ética
como fundamento da existência humana em todas as suas dimensões é igualmente o
fundamento da possibilidade da pesquisa científica íntegra.
III – Desneutralizando a ciência: desnaturalizando a lógica
científica
Porém, vivemos em um mundo de extrema complexidade. Isto vem
sendo destacado pelos mais eminentes pensadores da nossa era. Qualquer um
percebe a que ponto, contemporaneamente, a complexidade nos penetra, a que ponto
penetramos a complexidade do mundo. É evidente que isso não poderia deixar de
acontecer no campo das organizações que, de algum modo, estabelecemos para
viabilizar as formas de relações do ponto de vista de instituições criadas para
a preservação da vida. E, aqui, fique bem claro: por “instituições” não
entendemos senão isso: tentativa de organização social fundada segundo a
preocupação original e inarredável de preservação da vida.
Trata-se aqui, portanto, da questão da relação entre a ética e
as instituições. Qual seria esta relação? Ora, segundo o que até aqui temos
proposto, não poderia ser esta relação outra, senão uma relação fundacional. Ou seja, uma instituição
que não tenha por base permitir a possibilidade de relações eticamente saudáveis
entre seus membros é uma instituição vocacionada ao fracasso ou à formalização
violenta de suas estruturas (tantas vezes observável em instituições reais), que
acabam por denunciar à contemporaneidade, pela violência a que sujeita os
indivíduos em nome de uma vaga generalidade ou formalidade, a sua desumanidade e
as suas dimensões anti-sociais e antiecológicas: antiéticas (quer dizer:
anti-humanas e anti-ecológicas). Toda instituição que não seja capaz de
contemplar esta preocupação vital fundamental – a saber, de uma relação
eticamente saudável entre os indivíduos e não apenas das relações dos seres
humanos uns com os outros, mas dos seres humanos com todo e qualquer ser vivo e
com a natureza em geral, é uma instituição que tende necessariamente a fracassar
e a abortar a sua profissão de existência.
Estas reflexões nos conduzem ao redimensionamento histórico das
próprias instituições já existentes. Quais das instituições existentes são fiéis
à vida? Quais as instituições existentes promovem condições que permitem não só
a sobrevivência dos indivíduos, mas a sua vida propriamente dita enquanto
conteúdo de realidade mais próximo delas mesmas? Por outro lado, quais são as
instituições atualmente vigentes que não fazem senão mutilar, ou mesmo impedir,
que a vida possa se desenvolver em toda a sua exuberância? A resposta a esta
questão é uma resposta decisiva, que
nos conduz à reconfiguração histórica e social das instituições hoje existentes.
Ressaltemos uma vez mais: evidentemente, temos para esta reconsideração um
parâmetro muito claro de validade, e este parâmetro não pode ser senão ético.
Instituições que têm vida própria e que funcionam como grandes, imensas,
máquinas anônimas, a bem da produção de dinheiro ou riquezas ou da reprodução de
poder, nas quais os indivíduos não passam de números, autômatos ou engrenagens
substituíveis, são instituições que nada têm a ver com a vocação humana, e,
portanto, são instituições absolutamente antiéticas. Não têm como subsistir em
um mundo ecologicamente sustentável. Pensar, por outro lado, no seu
aperfeiçoamento, é algo que nos parece, até certo ponto, improvável. Na verdade,
a instrumentalização da razão, a razão instrumental, tal como chamavam, por
exemplo, Adorno e Horkheimer, é capaz de destilar monstruosidades onde as
pessoas se sintam de certa forma pertinentes, sem que sua pertença seja
concreta. Números que flutuam, símbolos que se substituem à carne e ao sangue de
cada um de nós, estruturas estreitas, quantificações, hierarquias kafkianas,
ordenações, lógicas anquilosadas, sistemas de poder, na verdade tudo isso se
constitui numa espécie de repositório de neuroses sociais que, uma vez examinado
a fundo, revelará nada mais do que uma extrema violência de origem, uma totalização que
conspira, em todos os sentidos, contra a vida. Instituições deste estilo não são
apenas antiéticas, elas são antiecológicas e antipolíticas, elas são anti-humanas e, portanto, não oferecem
absolutamente nenhuma possibilidade de futuro; tratam-se de abortos daquilo que
se poderia pensar ter ou dever ter uma instituição como tal. Instituições já
são, por sua própria natureza, dimensões-limites do humano, ao formalizar o
informalizável para bem possibilitar a convivência nas sociedades, e não existem
sem grandes dificuldades e tendências a oprimir o humano, e isso, muitas vezes,
apesar de toda a boa-vontade ética de quem as pensou. O que dizer, agora, de
instituições que, em nome de princípios políticos e econômicos, se pretendem substituir à vida como tal? Pois uma
implementação, uma instituição, uma formalização, muitas vezes acaba por afastar
os seres humanos uns os outros, estabelece entre os indivíduos limites
invisíveis que impedem a naturalidade das relações vitais mais fundamentais.
Todavia, temos de reconhecer que, na complexidade do mundo atual, seria muito
difícil sobrevivermos sem instituições reguladoras. O que é agora necessário,
então, é que consigamos, com o crivo ético, no sentido que temos até agora
desenvolvido, ser capazes de criticar
a fundo a lógica de constituição e perpetuação de toda e qualquer instituição,
em nome da ética.
Em suma: instituições que transformam pessoas em engrenagens e
máquinas não são apenas antiéticas, ou anti-humanas, elas são antivitais. E, por isso, contradizem a
própria lógica da vida: não podem subsistir. A vida, com o passar do tempo e no
devido tempo, saberá, provavelmente de forma muito dolorosa, derribar estas
monstruosidades que o ser humano é capaz de conceber e erigir, caso não sejamos
lúcidos o suficiente para desconstruirmos aquilo que se constituiu de forma
desumana. A ética é, portanto, também, uma espécie de crivo do sentido vital. Tudo aquilo que
se formaliza a tal ponto que não se encontra mais com sua origem, tudo aquilo
que se transforma em uma espécie de máquina semovente que não se compreende a si
mesma, de tal forma que não é capaz de legitimar a sua própria existência em
função da vida, não passa de algum tipo de máquina de violência anti-humana ou
de figuras de um futuro museu teratológico. Substituir pessoas por números, por
dinheiro, por palavras, por símbolos, é, do ponto de vista administrativo da
razão instrumental, muito útil; é todavia, do ponto de vista da sobrevivência da
humanidade dos seres humanos e do planeta, inviável.
Assim, uma instituição não pode ser concebida, em termos
humanos, a não ser no sentido de originar-se da mesma semente da relação humana
ética, saudável, pois esta relação saudável é o corretivo que a instituição
necessitará constantemente para não degenerar em totalidade violenta. Ética e
instituição devem ser, no dia-a-dia concreto da vida institucional, tão próximas
quanto possível; poderíamos dizer: radicalmente interdependentes. Uma
instituição que não tenha, na sua constituição mais profunda, na sua medula de
sentido, a própria dimensão relacional humana, é uma instituição vocacionada ao
fracasso. Ela não subsistirá aos momentos concretos que se sucedem no tempo e
acabam expondo aquilo que está oculto em nome de grandezas ou jogos de poder
ecológica e humanamente injustificáveis.
Ora, é muito provável que a (tecno)ciência seja a mais complexa,
poderosa e influente das instituições contemporâneas. Desde seu nascimento, há
muitos séculos, a ciência nada faz, senão se sofisticar, se multiplicar e
estabelecer parâmetros de existência e validade em todas as dimensões da vida. O
ser humano acabou por fazer da ciência a sua verdade racional, tendendo,
especialmente na cultura ocidental, a fazer dela o seu ídolo autolegitimante ao qual tudo o
mais – especialmente outras formas de racionalidade – é sacrificado.
Por outro lado, sabemos, pelo testemunho doloroso do século que
acaba de findar, que esta ciência tem muitas faces, muitas dimensões, e está
muito longe de ser compreendida em todo o seu potencial, tanto construtivo
quanto destrutivo. Na verdade, boa parte daquilo que temos chamado a
“esquizofrenia civilizatória do século XX”[2],
ou seja, a convivência de situações absurdas do ponto de vista da vida e de sua
sobrevivência com situações de avanço científico inusitado e extraordinário, tem
a ver com o desconhecimento destes potenciais. A que poderia se dever o
desconhecimento destes potenciais? A resposta a esta questão não é
extraordinariamente difícil; podemos avançar que, na verdade, uma das dimensões
mais avessas ao controle externo é justamente a ciência, talvez por ter esta
nascido, pelo menos em sua feição moderna, como uma espécie de superação dos
muros externos de controle de pensamento. Esta vocação de desenvolvimento, que
pode ser percebida na forma de como a ciência foi destruindo uma série de
barreiras a ela externas, do ponto de vista, por exemplo, filosófico, religioso
e ideológico, acabou por se transformar no mote de seu próprio desenvolvimento.
A ciência precisa de liberdade; ciência sem liberdade não existe. Esta retórica
é, evidentemente, muito eloqüente, e tem a sua porção de verdade. Por outro
lado, trata-se de uma retórica de uma extrema periculosidade. Há de se descobrir
isso facilmente, na medida em que se descobre, por exemplo, as falácias do
positivismo científico. A ciência, abandonada a si mesma e à sua própria lógica,
é um animal selvagem e furioso recluso em uma sala repleta de obras de arte e
cristais preciosos. Ele tentará sair da sala, e para isso quebrará muito do que
ali se encontra. Em nome de sua liberdade, sacrificará muitos bens; em nome de
sua sobrevivência, sacrificará muitas das dimensões também importantes, ou mesmo
muito mais importantes que ele, que nesta sala se encontram. E esta é apenas uma
das dimensões do problema. Mas uma dimensão que leva a desdobramentos muitíssimo
perigosos, dos quais alguns exemplos são mui perceptíveis hoje em dia – por
exemplo, a transformação da ciência em uma espécie de braço intelectual armado
das lógicas de poder hegemônico. Ou seja, deixada a si mesma, a ciência abdicará
de sua origem humana – não existe ciência que não seja humana, pois toda ciência
é feita por e para humanos – e cometerá, sem mais, o
matricídio em relação ao que a deu origem – a ação ética. Exemplos disso, aliás,
não faltam na história.
Sabemos muito bem dos grandes dilemas que surgem no cérebro de
qualquer criança quando descobre que, com uma pequena porcentagem dos gastos
anuais com armas se poderia acabar com a fome no mundo. Que lógica é essa, que
subjaz a esta questão humana? Propomos refazer a pergunta: qual a justificativa
para tal fato? Evidentemente não se trata de uma justificativa ética.
A constatação fundamental para abordar construtivamente esse
impasse latente ou manifesto é perceber que ciência e ética provém de fontes
racionais algo diferenciadas na sua origem. Ciência, saber, iluminar, invadir a
realidade, expor as essências, descobrir os núcleos da existência, ir até ande
nunca outro ser humano tenha ido, estes sonhos modernos mas que já repousavam in nuce na pré-história do logos[3],
todos eles têm como preocupação muito secundária o respeito por aquele que é o
seu objeto, o objeto científico. Caso assim não fosse, não poderiam dissecá-lo,
não poderiam analisá-lo. Mas a ciência não é analítica por natureza? Este é um
dos dilemas centrais com os quais temos que conviver hoje, e que exige uma
mobilização ímpar de energias intelectuais.
Todavia, o tema é passível de clarificação. Basta adiantarmos
inicialmente as seguintes considerações: tal como o ser humano, e exatamente
como fruto do ser humano não-neutro
por definição, a ciência nada tem de neutra. O mito da ciência neutra é muito conveniente
àqueles que a manipulam, e que, com ela, manipulam outros. Esta questão, que
parecia nem ao menos ter lugar no cérebro de grandes pensadores e cientistas até
há pouco tempo atrás, parece definitivamente diluída, do ponto de vista teórico,
ao fim da famosa querela do positivismo, onde se evidencia com clareza, hoje
incontestável, que não há ciência nem
cientista sem interesses muito além dos meros interesses “científicos” –
interesses que, se não são claros, podem ser dissecados a ponto de exporem o
seu núcleo de claridade.
Ora, talvez este seja o pequeno elo que possa unir ética, vida humana, vida na Terra, com
ciência: potência intelectual humana
que se desprende da própria humanidade para transformar o mundo numa espécie de
mera correlação entre objetos
conhecidos e aqueles que conhecem os objetos. A ciência, pelo menos a ciência
moderna (não estamos aqui falando da mais prudente ciência contemporânea),
normalmente se instrumentaliza em tecnologia de invasão, não só dos átomos
e das moléculas, mas igualmente dos povos e das consciências. Esta ciência não
mantém com a ética um parentesco evidente. Todavia, um elo possível de
aproximação está no fato de que ambas são não-neutras, porque ambas são produtos
humanos. E nada do que é humano é neutro.
Este é o ponto de partida. Se quisermos pensar uma articulação
entre ciência e ética, teremos que estabelecer uma hierarquia clara. Qual a
hierarquia que temos convivido desde a modernidade? Exatamente a hierarquia
entre a ciência e a ética, onde primeiro se pensa os interesses científicos, e
depois se tenta resolver, se é que se tenta, os problemas éticos daí
decorrentes. Porém, situações complexas e dolorosas que a contemporaneidade tem
vivido instigam a inversão desta
hierarquia que pareceu, a muitos modernos, “natural”. Trata-se, assim, de uma
reconsideração axiológica radical. A ciência, fruto do intelecto humano, não é
fruto da vida humana como tal, mas de uma de suas parcelas, de uma de suas
dimensões, embora uma das suas dimensões mais poderosas: a sua racionalidade. O
ímpeto grego pelo conhecer, que permitiu que chegássemos tão longe em dimensões
científicas, deve ser refreado pela reconsideração contemporânea do sentido do conhecer enquanto questão
humana fundamental. O sentido do conhecer, o sentido não-neutro, e que não pode
nunca ser reduzido a uma dimensão de uma equação de igualdade, repousa não na
lógica do desenvolvimento da própria ciência e em suas implicações tecnológicas
ou tecnocráticas, mas, exatamente, na ética que deveria sempre fundamentar o conhecimento científico.
Tão simples assim aparece a questão, e tão dificilmente exeqüível, a julgarmos
pelos fatos que podemos acompanhar no dia-a-dia. Talvez estejamos aqui ainda
mais longe, do que em outros casos, de uma situação próxima da ideal. Porém, não
podemos abdicar desta consciência. Ciência sem consciência é uma contradição
suicida, mas, infelizmente, é uma contradição concreta, a mais encontrável de
todas as situações, quando examinamos os dilemas humano-ecológicos do planeta;
em muitos níveis, podemos experimentá-la nas mais diversas dimensões da vida
contemporânea. “Ciência com consciência”, à Morin e outros autores, por outro
lado, deve significar, para nós, ciência com ética como base. A consciência da ciência é a ética, ou
seja, a reflexão sobre seu “antes”, “durante” e “depois”, seu sentido humano e
histórico e, direta ou indiretamente, seu sentido vital. A ética é, desta forma,
a possibilidade fundante e meta-científica da racionalidade científica, aquilo
sem o qual a racionalidade científica, fechada em si mesma, acaba por implodir
em sua totalização de poder e sentido, destruindo a tudo em seu
autodestruir-se.
Surge, portanto, nosso segundo
postulado, no sentido de uma “ética epistemológica”: só é possível realizar pesquisas
cientificamente íntegras se a ciência nas quais se baseiam traz clara em si e a
si mesma a metareflexão de seu sentido de fazer o que faz.
IV – Em busca da pesquisa ética e
cientificamente íntegra
As questões reais são, dessa forma, claras: qual o real sentido do conhecimento,
hoje? Essa é a questão fundamental, capaz, uma vez desdobrada, de
requalificar tanto a lógica da pesquisa científica quanto a estruturação das
novas conquistas da ciência e da tecnologia. E “sentido do conhecimento” nada
tem a ver com dimensões meramente abstratas do mesmo, ou deriváveis das suas
estruturas internas que são socialmente apropriadas por quem faz da posse do
conhecimento expressão de poder. Tem a ver, sim, com a questão humana do conhecimento, com o
sentido de realidade que o conhecimento assume ou pode vir a assumir. O
“conceito” de disciplina é excessivamente estreito para comportar a carga de
responsabilidade que a construção e posse dos dados do conhecimento significa. O
mesmo vale, por decorrência, para termos dele derivados, como
“interdisciplinaridade” ou “transdisciplinaridade”: todos traduzem, é verdade,
um sentido de aperfeiçoamento da falha evidente e tão visível na atualidade,
traduzida pela compartimentação dos saberes e pela apropriação e manipulação
escancaradas das linguagens científicas e organizacionais por detentores do
poder econômico e político. Mas, em si, esses termos acabam por serem
insuficientes na essência do que expressam. É no núcleo da própria idéia de
disciplina que deve ser procurada sua falha básica: a tendência lógica de
autonomização que a habita e que é, por sua vez, expressão do desenvolvimento do
que, em germe, se encontra na concepção filosófica da realidade como mero
“objeto” do saber, e não como dimensão
relacional. A realidade se vinga da simplificação instrumental a que é
submetida pelas disciplinas e ciências tradicionais constituindo problemas de
crescente complexidade e gravidade, cuja correta abordagem transcende, em muito,
as potências do mito iluminista e de sua derivação contemporânea, a razão
instrumental. A interdisciplinaridade, valiosa em suas intenções e em muitas de
suas conquistas, é igualmente insuficiente para o equacionamento de tais
problemas, pois a raiz dos mesmos se encontra des-locada em relação à possibilidade de
referenciação científica, tenha essa o nível de sofisticação que se queira. É desde outro âmbito que tais problemas
têm de ser abordados (concretamente, como exemplo, a articulação geopolítica
bélico-econômica que ora vivemos e as questões sócio-ecológicas de gravidade
global e extrema, como o esgotamento da água potável). Esse outro âmbito é o nível ético-humano da realidade, como a
seguir examinaremos.
O século XX acaba sem que a solução
dos problemas humanos fundamentais esteja ao menos encaminhada; muitos desses
problemas se tornaram, na verdade, muito mais agudos. Conflitos, desigualdades,
tensões sociais, revoluções no âmbito tecnológico e das comunicações, tudo isso
determina a direção na qual a racionalidade tem de tomar na sua atual relação
com o mundo. Trata-se da direção ética. É da melhor fundamentação
possível do agir humano, da racionalidade desse agir ético – ou melhor, desse agir ético enquanto forma de
racionalidade fundamental – que depende a legitimidade do conhecimento,
hoje, porque é disso que depende tanto o nosso presente vivível como o futuro do
mundo.
Relembremos com ênfase: nem sempre é fácil entender até que ponto
a ética é determinante na vida dos indivíduos e das sociedades. É preciso, antes
de mais nada, que se observe que “Ética” não tem, aqui, o sentido de um mero
conjunto de reflexões, pretensamente neutro, sobre as diversas formas do agir
humano. Também não significa um mero conjunto de prescrições a serem seguidas.
“Ética” tem, aqui, o sentido de uma condição original e fundante de toda e
qualquer atividade humana, inclusive do próprio conhecimento, na medida em que
não se pode construir ciência alguma com sentido humano em um meio – no contexto
de uma guerra, por exemplo – onde a convivência entre os diversos seja dirigida
não no sentido da relação uns com os
outros, mas da aniquilação de uns
pelos outros (a não ser, evidentemente, a racionalidade derivada da própria
beligerância e que será então, por sua vez, beligerante). Portanto, para que se
possa pensar ou conceber o conhecimento, a pesquisa, com sentido humano, hoje,
para que as preocupações epistemológicas possam tomar forma, sejam elas quais
forem, fez-se necessário que o chão por sobre o qual caminhamos seja determinado
por relações éticas mínimas: elas são absolutamente indispensáveis.
Mas isso é verdade
não só com relação a qualquer especulação: também com relação a toda e qualquer
atividade humana. Não há uma só atividade humana que não dependa diretamente de
ações éticas prévias, ou que não seja essas ações mesmas. O fato de termos
chegado à idade adulta envia a um passado onde inúmeras pessoas agiram para
conosco no sentido de permitir tal crescimento, do ponto de vista físico,
psicológico, etc. Bastaria que apenas uma delas agisse de forma inversa – assassinando-nos, por
exemplo – para que aqui não estivéssemos, pensando justamente em nosso passado.
O fato de que tal não aconteceu é a
condição de nossa vida. Retornamos ao
primeiro postulado: o agir ético humano é
a expressão da não-neutralidade da vida. Assim, como disse Ludwig
Wittgenstein certa vez, “a ética não trata do mundo... a ética deve ser uma
condição do mundo...”. E a ciência, não enquanto razão instrumental ou formal,
mas enquanto expressão do sentido humano de uma relação não meramente
objetivante com a realidade, é igualmente derivada dessa referência ética de
fundo.
Desse modo, todas
as questões humanas – das mais prosaicas e individuais aos grandes projetos
coletivos das comunidades e das sociedades – apontam, em primeiro lugar para
questões éticas de origem: sua origem
é ética. Todas as grandes questões que devastam os seres humanos enquanto
coletividade de vida têm fundo ético – da escassez da água às crises
sócio-ambientais, das disparidades norte-sul à precariedade das instituições
políticas, do buraco de ozônio às emissões tóxicas na atmosfera, das guerras
maiores e menores ao contexto de violência, em infinitas formas, que vicejam em
meio ao medo coletivo. E, especialmente, o que sintetiza tudo: a transformação
da qualidade em quantidade, quer
dizer, de vida em dinheiro, em sua expressão mais vulgar. Nenhuma dessas tão
importantes e decisivas questões pode nem ao menos ser abordada senão desde o
prisma de uma profunda questão ética a ser equacionada filosoficamente de forma
muito séria, pois desse correto equacionamento pode vir a depender a
sobrevivência da humanidade como um todo. Muito além da formalização, da
disciplina, da instrumentalidade científica, a exigência da vida conduz à
necessidade impostergável de uma reconsideração da racionalidade enquanto
expressão de vida relacional na
articulação “ser humano-mundo”. Essa é certamente a mais urgente e decisiva
tarefa da racionalidade, ou seja, essa é a tarefa epistemológica por excelência
do século XXI. Podemos, portanto, concluir essa breve reflexão com nosso
terceiro e último postulado: pesquisa
científica íntegra, ética e cientificamente, é aquela que assenta e se
desenvolve desde e sobre a promoção da vida em todas as suas formas e em todos
os seus sentidos, no espaço e no tempo, aqui e agora, na responsabilidade de um
fazer que – etimologicamente, humanamente – responde pelo que faz, e o faz como expressão
ética-ecológica da vida humana em relação com o mundo.
Referências
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(Orgs.), Globalização e humanismo
latino, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2000, p. 203-212.
______, “Por uma estética antropológica desde a ética
da alteridade: do ‘estado de exceção’ da violência sem memória ao ‘estado de
exceção’ da excepcionalidade do concreto”, in: VERITAS – Revista de Filosofia, v. 51,
n. 2, junho 2006, p. 129-139.
SOUZA, Ricardo Timm de.
– OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. (Orgs.) Fenomenologia hoje III – bioética,
biotecnologia, biopolítica, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.
[1]
Cf. nosso Totalidade & Desagregação –
sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas, Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1996, especialmente p. 15-29.
[2]
Cf. nosso Totalidade & Desagregação –
sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas, op. cit., p.
15-29.
[3]
Cf. nosso “Da neutralização da diferença à dignidade da Alteridade: estações de
uma história multicentenária”, in: SOUZA, R. T. Sentido e Alteridade – Dez ensaios sobre
o pensamento de E. Levinas, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p.
189-208.
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