segunda-feira, 15 de abril de 2013

INTEGRIDADE ÉTICA E CIENTÍFICA DA PESQUISA



INTEGRIDADE ÉTICA E CIENTÍFICA DA PESQUISA
Três dimensões de sua condição de possibilidade


Ricardo Timm de Souza


I - Introdução

            A palavra “ética” tem se tornado, especialmente desde meados da última década do século XX e ao longo desse século XXI que inicia, mais e mais presente. Como se correspondesse à emergência inesperada, na superfície da terra, de veios e rachaduras por onde flui a fumaça oriunda das profundidades, anunciando uma erupção de um vulcão distante ou aparentemente extinto, a palavra “ética” se insinua em discussões as mais diversas, irrompe no corpo dos discursos, faz-se presente, de forma muitas vezes incômoda, em documentos, manifestos, estudos e libelos os mais variados, que pretendem desenvolver linhas de desenvolvimento de instituições, programas, eventos da mais diversa ordem – especialmente em termos educacionais, jurídicos, científicos e tecnológicos. Tornou-se não só adequado e pertinente introduzir o termo “ética” nos mais variados meios e contextos, como estar algo mais aprofundadamente o seu real significado nas diversas escolas filosóficas, o que garantiria, em tese, uma espécie de chancela legitimante da qualidade e das pretensões dos discursos.
            Isso, porém, não significa absolutamente que haja um domínio social mínimo dos níveis semânticos elementares desta que é, na sua origem e essência, uma disciplina filosófica de grande complexidade e longa evolução. Pois o fato é que se fala de “ética”, geralmente, com uma espécie de confiança subliminar em uma pretensa potência auto-explicativa dessa categoria. E esta confiança não advém, na quase generalidade das vezes, de uma consciência dos sentidos diversos desse termo, ou de sua gravidade; ela aparece como uma espécie de resposta a uma difusa consciência de uma exigência social ampla, de muito difícil compreensão, mas que se articula com a especificidade dos tempos que ora vivemos – tempos de fronteiras em todos os sentidos[1].
            Ora, não se pode, evidentemente, nem ao menos abordar o tema da pesquisa cientificamente relevante, adequada, sem que as condições de sua integridade sejam explicitados com clareza. E, naturalmente, a condição ética da pesquisa é determinante para a sua integridade, em qualquer sentido desse termo.
            A seguir, examinaremos de modo conciso e sumário três dimensões de possibilidade da integriodade da pesquisa a partir de sua origem – da motivação que lhe deu origem – a qual, por óbvio, como tudo que é humano, não pode ser senão ética. Tais dimensões – cuja argumentação de base, obviamente, não é viável desenvolver nos limites desse texto – serão para os fins desse escrito, apresentadas como “postulados”.


II – Ética como condição de concepção de uma vida propriamente humana

            Esta referida não-consciência suficiente das implicações e sentidos, não apenas filosóficos, da categoria “ética”, traz consigo perigos consideráveis; perigos de generalização inconseqüente, ou, o que é mais grave, de banalização ou manipulação conceitual. É necessário, portanto, que se repensem continuamente as dimensões realmente significativas do termo “ética”. O presente texto insere-se nessa linha de argumentação: é necessário reconsiderar continuamente os significados do termo “ética”, para que se possa encontrar, a cada momento, o equilíbrio máximo entre o rigor teórico e a disponibilidade responsável do conceito. E este é, também, o objetivo maior deste texto: manter a argumentação no ponto possível de equilíbrio entre a fundamentação teórica mais rigorosa possível – ainda que não explícita no discurso – e a acessibilidade responsável que viabilize a utilização intersubjetiva do termo “ética” de forma filosoficamente sólida e defensável por não-especialistas, especialmente no que concerne à pesquisa científica íntegra.
            A Ética não é um elemento a mais a ser levado em consideração quando se pensa sobre a questão filosófica fundamental: a condição humana. Em verdade, a Ética é o fundamento da própria possibilidade de pensar o humano. Essa afirmação pode parecer estranha à primeira vista, mas esta estranheza se desfaz muito rapidamente, quando os termos definidores da questão são examinados com propriedade filosófica. Pois a própria idéia de pensar pressupõe a Ética. Não existe pensamento fora de alguém que pensa, e esse alguém não é uma mônada fechada em si mesma, mas, de algum modo, o fruto das relações – seja no âmbito de sua gênese biológica (ninguém nasce senão de seus pais), seja em termos de sua geração social e histórica (ninguém existe fora de uma cultura e de uma língua que o acolhem, ou fora de estruturas materiais que o sustentam). Ser humano é provir e viver na multiplicidade do humano, e aí, na teia de relações, sobreviver. E não qualquer multiplicidade, mas multiplicidade qualificada ou, exatamente, em termos filosóficos, multiplicidade ética, do agir de uns com relação aos outros e dos sentidos deste agir. Pois, para que a gestação tenha chegado a um bom termo, é necessário que nem nossa mãe, nem todos os que a apoiaram, houvessem agido de forma , pelo menos não a ponto de impedir nosso desenvolvimento. O mesmo se dá, evidentemente, em cada um dos momentos de nossa vida, não apenas daqueles por nós facilmente percebidos como decisivos ou extremamente importantes, mas igualmente naqueles, aparentemente coloquiais, aparentemente irrelevantes, que constituem propriamente o dia-a-dia de nossa vida, a teia dos momentos na qual vivemos em nossa cotidianidade. Em suma: em todos os momentos de nossa vida, define-se em cada situação a continuidade de nossa existência, não através de atos indiferentes ou pretensamente “neutros”, mas na especificidade única e não-neutra de cada ato. Um ato qualquer, isolado, pode tanto fazer viver como fazer morrer; embora tal fato seja claramente perceptível nos grandes instantes decisivos da vida, onde a vida e a morte se encontram – tanto um ato heróico de sacrifício por outrem como um ato que mata outrem, tanto uma intervenção cirúrgica bem sucedida como a destruição de aspectos da vida – na verdade tal fato se dá, de um modo ou de outro, em todo e cada um dos instantes da existência. Não há instante isolado, neutro ou indiferente para a vida; há apenas instantes que conspiram, ou para a continuação e promoção da vida, ou para sua corrosão e destruição. E isto por um motivo muito simples: o ser humano é um ser não-neutro por excelência. Essa não-neutralidade é simultaneamente, em termos filosóficos, o resultado da reflexão original sobre a condição humana e a possibilidade de tal reflexão.
            Ética é, assim, o fundamento da condição humana que vive e medita sobre si, sobre seu lugar, sobre sua casa, seu oikos, suas relações, seu mundo; ética é, neste sentido, essencialmente, uma questão eco-lógica. E, assim sendo, ética é o fundamento de todas as especificidades do viver, em suas mais complexas relações e derivações, da história das comunidades e da própria filosofia. E, evidentemente, para o que aqui é relevante, emerge ao natural o primeiro postulado de nossa argumentação: a ética como fundamento da existência humana em todas as suas dimensões é igualmente o fundamento da possibilidade da pesquisa científica íntegra.


III – Desneutralizando a ciência: desnaturalizando a lógica científica

Porém, vivemos em um mundo de extrema complexidade. Isto vem sendo destacado pelos mais eminentes pensadores da nossa era. Qualquer um percebe a que ponto, contemporaneamente, a complexidade nos penetra, a que ponto penetramos a complexidade do mundo. É evidente que isso não poderia deixar de acontecer no campo das organizações que, de algum modo, estabelecemos para viabilizar as formas de relações do ponto de vista de instituições criadas para a preservação da vida. E, aqui, fique bem claro: por “instituições” não entendemos senão isso: tentativa de organização social fundada segundo a preocupação original e inarredável de preservação da vida.
Trata-se aqui, portanto, da questão da relação entre a ética e as instituições. Qual seria esta relação? Ora, segundo o que até aqui temos proposto, não poderia ser esta relação outra, senão uma relação fundacional. Ou seja, uma instituição que não tenha por base permitir a possibilidade de relações eticamente saudáveis entre seus membros é uma instituição vocacionada ao fracasso ou à formalização violenta de suas estruturas (tantas vezes observável em instituições reais), que acabam por denunciar à contemporaneidade, pela violência a que sujeita os indivíduos em nome de uma vaga generalidade ou formalidade, a sua desumanidade e as suas dimensões anti-sociais e antiecológicas: antiéticas (quer dizer: anti-humanas e anti-ecológicas). Toda instituição que não seja capaz de contemplar esta preocupação vital fundamental – a saber, de uma relação eticamente saudável entre os indivíduos e não apenas das relações dos seres humanos uns com os outros, mas dos seres humanos com todo e qualquer ser vivo e com a natureza em geral, é uma instituição que tende necessariamente a fracassar e a abortar a sua profissão de existência.
Estas reflexões nos conduzem ao redimensionamento histórico das próprias instituições já existentes. Quais das instituições existentes são fiéis à vida? Quais as instituições existentes promovem condições que permitem não só a sobrevivência dos indivíduos, mas a sua vida propriamente dita enquanto conteúdo de realidade mais próximo delas mesmas? Por outro lado, quais são as instituições atualmente vigentes que não fazem senão mutilar, ou mesmo impedir, que a vida possa se desenvolver em toda a sua exuberância? A resposta a esta questão é uma resposta decisiva, que nos conduz à reconfiguração histórica e social das instituições hoje existentes. Ressaltemos uma vez mais: evidentemente, temos para esta reconsideração um parâmetro muito claro de validade, e este parâmetro não pode ser senão ético. Instituições que têm vida própria e que funcionam como grandes, imensas, máquinas anônimas, a bem da produção de dinheiro ou riquezas ou da reprodução de poder, nas quais os indivíduos não passam de números, autômatos ou engrenagens substituíveis, são instituições que nada têm a ver com a vocação humana, e, portanto, são instituições absolutamente antiéticas. Não têm como subsistir em um mundo ecologicamente sustentável. Pensar, por outro lado, no seu aperfeiçoamento, é algo que nos parece, até certo ponto, improvável. Na verdade, a instrumentalização da razão, a razão instrumental, tal como chamavam, por exemplo, Adorno e Horkheimer, é capaz de destilar monstruosidades onde as pessoas se sintam de certa forma pertinentes, sem que sua pertença seja concreta. Números que flutuam, símbolos que se substituem à carne e ao sangue de cada um de nós, estruturas estreitas, quantificações, hierarquias kafkianas, ordenações, lógicas anquilosadas, sistemas de poder, na verdade tudo isso se constitui numa espécie de repositório de neuroses sociais que, uma vez examinado a fundo, revelará nada mais do que uma extrema violência de origem, uma totalização que conspira, em todos os sentidos, contra a vida. Instituições deste estilo não são apenas antiéticas, elas são antiecológicas e antipolíticas, elas são anti-humanas e, portanto, não oferecem absolutamente nenhuma possibilidade de futuro; tratam-se de abortos daquilo que se poderia pensar ter ou dever ter uma instituição como tal. Instituições já são, por sua própria natureza, dimensões-limites do humano, ao formalizar o informalizável para bem possibilitar a convivência nas sociedades, e não existem sem grandes dificuldades e tendências a oprimir o humano, e isso, muitas vezes, apesar de toda a boa-vontade ética de quem as pensou. O que dizer, agora, de instituições que, em nome de princípios políticos e econômicos, se pretendem substituir à vida como tal? Pois uma implementação, uma instituição, uma formalização, muitas vezes acaba por afastar os seres humanos uns os outros, estabelece entre os indivíduos limites invisíveis que impedem a naturalidade das relações vitais mais fundamentais. Todavia, temos de reconhecer que, na complexidade do mundo atual, seria muito difícil sobrevivermos sem instituições reguladoras. O que é agora necessário, então, é que consigamos, com o crivo ético, no sentido que temos até agora desenvolvido, ser capazes de criticar a fundo a lógica de constituição e perpetuação de toda e qualquer instituição, em nome da ética.
Em suma: instituições que transformam pessoas em engrenagens e máquinas não são apenas antiéticas, ou anti-humanas, elas são antivitais. E, por isso, contradizem a própria lógica da vida: não podem subsistir. A vida, com o passar do tempo e no devido tempo, saberá, provavelmente de forma muito dolorosa, derribar estas monstruosidades que o ser humano é capaz de conceber e erigir, caso não sejamos lúcidos o suficiente para desconstruirmos aquilo que se constituiu de forma desumana. A ética é, portanto, também, uma espécie de crivo do sentido vital. Tudo aquilo que se formaliza a tal ponto que não se encontra mais com sua origem, tudo aquilo que se transforma em uma espécie de máquina semovente que não se compreende a si mesma, de tal forma que não é capaz de legitimar a sua própria existência em função da vida, não passa de algum tipo de máquina de violência anti-humana ou de figuras de um futuro museu teratológico. Substituir pessoas por números, por dinheiro, por palavras, por símbolos, é, do ponto de vista administrativo da razão instrumental, muito útil; é todavia, do ponto de vista da sobrevivência da humanidade dos seres humanos e do planeta, inviável.
Assim, uma instituição não pode ser concebida, em termos humanos, a não ser no sentido de originar-se da mesma semente da relação humana ética, saudável, pois esta relação saudável é o corretivo que a instituição necessitará constantemente para não degenerar em totalidade violenta. Ética e instituição devem ser, no dia-a-dia concreto da vida institucional, tão próximas quanto possível; poderíamos dizer: radicalmente interdependentes. Uma instituição que não tenha, na sua constituição mais profunda, na sua medula de sentido, a própria dimensão relacional humana, é uma instituição vocacionada ao fracasso. Ela não subsistirá aos momentos concretos que se sucedem no tempo e acabam expondo aquilo que está oculto em nome de grandezas ou jogos de poder ecológica e humanamente injustificáveis.
Ora, é muito provável que a (tecno)ciência seja a mais complexa, poderosa e influente das instituições contemporâneas. Desde seu nascimento, há muitos séculos, a ciência nada faz, senão se sofisticar, se multiplicar e estabelecer parâmetros de existência e validade em todas as dimensões da vida. O ser humano acabou por fazer da ciência a sua verdade racional, tendendo, especialmente na cultura ocidental, a fazer dela o seu ídolo autolegitimante ao qual tudo o mais – especialmente outras formas de racionalidade – é sacrificado.
Por outro lado, sabemos, pelo testemunho doloroso do século que acaba de findar, que esta ciência tem muitas faces, muitas dimensões, e está muito longe de ser compreendida em todo o seu potencial, tanto construtivo quanto destrutivo. Na verdade, boa parte daquilo que temos chamado a “esquizofrenia civilizatória do século XX”[2], ou seja, a convivência de situações absurdas do ponto de vista da vida e de sua sobrevivência com situações de avanço científico inusitado e extraordinário, tem a ver com o desconhecimento destes potenciais. A que poderia se dever o desconhecimento destes potenciais? A resposta a esta questão não é extraordinariamente difícil; podemos avançar que, na verdade, uma das dimensões mais avessas ao controle externo é justamente a ciência, talvez por ter esta nascido, pelo menos em sua feição moderna, como uma espécie de superação dos muros externos de controle de pensamento. Esta vocação de desenvolvimento, que pode ser percebida na forma de como a ciência foi destruindo uma série de barreiras a ela externas, do ponto de vista, por exemplo, filosófico, religioso e ideológico, acabou por se transformar no mote de seu próprio desenvolvimento. A ciência precisa de liberdade; ciência sem liberdade não existe. Esta retórica é, evidentemente, muito eloqüente, e tem a sua porção de verdade. Por outro lado, trata-se de uma retórica de uma extrema periculosidade. Há de se descobrir isso facilmente, na medida em que se descobre, por exemplo, as falácias do positivismo científico. A ciência, abandonada a si mesma e à sua própria lógica, é um animal selvagem e furioso recluso em uma sala repleta de obras de arte e cristais preciosos. Ele tentará sair da sala, e para isso quebrará muito do que ali se encontra. Em nome de sua liberdade, sacrificará muitos bens; em nome de sua sobrevivência, sacrificará muitas das dimensões também importantes, ou mesmo muito mais importantes que ele, que nesta sala se encontram. E esta é apenas uma das dimensões do problema. Mas uma dimensão que leva a desdobramentos muitíssimo perigosos, dos quais alguns exemplos são mui perceptíveis hoje em dia – por exemplo, a transformação da ciência em uma espécie de braço intelectual armado das lógicas de poder hegemônico. Ou seja, deixada a si mesma, a ciência abdicará de sua origem humana – não existe ciência que não seja humana, pois toda ciência é feita por e para humanos – e cometerá, sem mais, o matricídio em relação ao que a deu origem – a ação ética. Exemplos disso, aliás, não faltam na história.
Sabemos muito bem dos grandes dilemas que surgem no cérebro de qualquer criança quando descobre que, com uma pequena porcentagem dos gastos anuais com armas se poderia acabar com a fome no mundo. Que lógica é essa, que subjaz a esta questão humana? Propomos refazer a pergunta: qual a justificativa para tal fato? Evidentemente não se trata de uma justificativa ética.
A constatação fundamental para abordar construtivamente esse impasse latente ou manifesto é perceber que ciência e ética provém de fontes racionais algo diferenciadas na sua origem. Ciência, saber, iluminar, invadir a realidade, expor as essências, descobrir os núcleos da existência, ir até ande nunca outro ser humano tenha ido, estes sonhos modernos mas que já repousavam in nuce na pré-história do logos[3], todos eles têm como preocupação muito secundária o respeito por aquele que é o seu objeto, o objeto científico. Caso assim não fosse, não poderiam dissecá-lo, não poderiam analisá-lo. Mas a ciência não é analítica por natureza? Este é um dos dilemas centrais com os quais temos que conviver hoje, e que exige uma mobilização ímpar de energias intelectuais.
Todavia, o tema é passível de clarificação. Basta adiantarmos inicialmente as seguintes considerações: tal como o ser humano, e exatamente como fruto do ser humano não-neutro por definição, a ciência nada tem de neutra. O mito da ciência neutra é muito conveniente àqueles que a manipulam, e que, com ela, manipulam outros. Esta questão, que parecia nem ao menos ter lugar no cérebro de grandes pensadores e cientistas até há pouco tempo atrás, parece definitivamente diluída, do ponto de vista teórico, ao fim da famosa querela do positivismo, onde se evidencia com clareza, hoje incontestável, que não há ciência nem cientista sem interesses muito além dos meros interesses “científicos” – interesses que, se não são claros, podem ser dissecados a ponto de exporem o seu núcleo de claridade.
Ora, talvez este seja o pequeno elo que possa unir ética, vida humana, vida na Terra, com ciência: potência intelectual humana que se desprende da própria humanidade para transformar o mundo numa espécie de mera correlação entre objetos conhecidos e aqueles que conhecem os objetos. A ciência, pelo menos a ciência moderna (não estamos aqui falando da mais prudente ciência contemporânea), normalmente se instrumentaliza em tecnologia de invasão, não só dos átomos e das moléculas, mas igualmente dos povos e das consciências. Esta ciência não mantém com a ética um parentesco evidente. Todavia, um elo possível de aproximação está no fato de que ambas são não-neutras, porque ambas são produtos humanos. E nada do que é humano é neutro.
Este é o ponto de partida. Se quisermos pensar uma articulação entre ciência e ética, teremos que estabelecer uma hierarquia clara. Qual a hierarquia que temos convivido desde a modernidade? Exatamente a hierarquia entre a ciência e a ética, onde primeiro se pensa os interesses científicos, e depois se tenta resolver, se é que se tenta, os problemas éticos daí decorrentes. Porém, situações complexas e dolorosas que a contemporaneidade tem vivido instigam a inversão desta hierarquia que pareceu, a muitos modernos, “natural”. Trata-se, assim, de uma reconsideração axiológica radical. A ciência, fruto do intelecto humano, não é fruto da vida humana como tal, mas de uma de suas parcelas, de uma de suas dimensões, embora uma das suas dimensões mais poderosas: a sua racionalidade. O ímpeto grego pelo conhecer, que permitiu que chegássemos tão longe em dimensões científicas, deve ser refreado pela reconsideração contemporânea do sentido do conhecer enquanto questão humana fundamental. O sentido do conhecer, o sentido não-neutro, e que não pode nunca ser reduzido a uma dimensão de uma equação de igualdade, repousa não na lógica do desenvolvimento da própria ciência e em suas implicações tecnológicas ou tecnocráticas, mas, exatamente, na ética que deveria sempre fundamentar o conhecimento científico. Tão simples assim aparece a questão, e tão dificilmente exeqüível, a julgarmos pelos fatos que podemos acompanhar no dia-a-dia. Talvez estejamos aqui ainda mais longe, do que em outros casos, de uma situação próxima da ideal. Porém, não podemos abdicar desta consciência. Ciência sem consciência é uma contradição suicida, mas, infelizmente, é uma contradição concreta, a mais encontrável de todas as situações, quando examinamos os dilemas humano-ecológicos do planeta; em muitos níveis, podemos experimentá-la nas mais diversas dimensões da vida contemporânea. “Ciência com consciência”, à Morin e outros autores, por outro lado, deve significar, para nós, ciência com ética como base. A consciência da ciência é a ética, ou seja, a reflexão sobre seu “antes”, “durante” e “depois”, seu sentido humano e histórico e, direta ou indiretamente, seu sentido vital. A ética é, desta forma, a possibilidade fundante e meta-científica da racionalidade científica, aquilo sem o qual a racionalidade científica, fechada em si mesma, acaba por implodir em sua totalização de poder e sentido, destruindo a tudo em seu autodestruir-se.
            Surge, portanto, nosso segundo postulado, no sentido de uma “ética epistemológica”: só é possível realizar pesquisas cientificamente íntegras se a ciência nas quais se baseiam traz clara em si e a si mesma a metareflexão de seu sentido de fazer o que faz.


IV – Em busca da pesquisa ética e cientificamente íntegra

As questões reais são, dessa forma, claras: qual o real sentido do conhecimento, hoje? Essa é a questão fundamental, capaz, uma vez desdobrada, de requalificar tanto a lógica da pesquisa científica quanto a estruturação das novas conquistas da ciência e da tecnologia. E “sentido do conhecimento” nada tem a ver com dimensões meramente abstratas do mesmo, ou deriváveis das suas estruturas internas que são socialmente apropriadas por quem faz da posse do conhecimento expressão de poder. Tem a ver, sim, com a questão humana do conhecimento, com o sentido de realidade que o conhecimento assume ou pode vir a assumir. O “conceito” de disciplina é excessivamente estreito para comportar a carga de responsabilidade que a construção e posse dos dados do conhecimento significa. O mesmo vale, por decorrência, para termos dele derivados, como “interdisciplinaridade” ou “transdisciplinaridade”: todos traduzem, é verdade, um sentido de aperfeiçoamento da falha evidente e tão visível na atualidade, traduzida pela compartimentação dos saberes e pela apropriação e manipulação escancaradas das linguagens científicas e organizacionais por detentores do poder econômico e político. Mas, em si, esses termos acabam por serem insuficientes na essência do que expressam. É no núcleo da própria idéia de disciplina que deve ser procurada sua falha básica: a tendência lógica de autonomização que a habita e que é, por sua vez, expressão do desenvolvimento do que, em germe, se encontra na concepção filosófica da realidade como mero “objeto” do saber, e não como dimensão relacional. A realidade se vinga da simplificação instrumental a que é submetida pelas disciplinas e ciências tradicionais constituindo problemas de crescente complexidade e gravidade, cuja correta abordagem transcende, em muito, as potências do mito iluminista e de sua derivação contemporânea, a razão instrumental. A interdisciplinaridade, valiosa em suas intenções e em muitas de suas conquistas, é igualmente insuficiente para o equacionamento de tais problemas, pois a raiz dos mesmos se encontra des-locada em relação à possibilidade de referenciação científica, tenha essa o nível de sofisticação que se queira. É desde outro âmbito que tais problemas têm de ser abordados (concretamente, como exemplo, a articulação geopolítica bélico-econômica que ora vivemos e as questões sócio-ecológicas de gravidade global e extrema, como o esgotamento da água potável). Esse outro âmbito é o nível ético-humano da realidade, como a seguir examinaremos.
            O século XX acaba sem que a solução dos problemas humanos fundamentais esteja ao menos encaminhada; muitos desses problemas se tornaram, na verdade, muito mais agudos. Conflitos, desigualdades, tensões sociais, revoluções no âmbito tecnológico e das comunicações, tudo isso determina a direção na qual a racionalidade tem de tomar na sua atual relação com o mundo. Trata-se da direção ética. É da melhor fundamentação possível do agir humano, da racionalidade desse agir ético – ou melhor, desse agir ético enquanto forma de racionalidade fundamental – que depende a legitimidade do conhecimento, hoje, porque é disso que depende tanto o nosso presente vivível como o futuro do mundo.
            Relembremos com ênfase: nem sempre é fácil entender até que ponto a ética é determinante na vida dos indivíduos e das sociedades. É preciso, antes de mais nada, que se observe que “Ética” não tem, aqui, o sentido de um mero conjunto de reflexões, pretensamente neutro, sobre as diversas formas do agir humano. Também não significa um mero conjunto de prescrições a serem seguidas. “Ética” tem, aqui, o sentido de uma condição original e fundante de toda e qualquer atividade humana, inclusive do próprio conhecimento, na medida em que não se pode construir ciência alguma com sentido humano em um meio – no contexto de uma guerra, por exemplo – onde a convivência entre os diversos seja dirigida não no sentido da relação uns com os outros, mas da aniquilação de uns pelos outros (a não ser, evidentemente, a racionalidade derivada da própria beligerância e que será então, por sua vez, beligerante). Portanto, para que se possa pensar ou conceber o conhecimento, a pesquisa, com sentido humano, hoje, para que as preocupações epistemológicas possam tomar forma, sejam elas quais forem, fez-se necessário que o chão por sobre o qual caminhamos seja determinado por relações éticas mínimas: elas são absolutamente indispensáveis.
Mas isso é verdade não só com relação a qualquer especulação: também com relação a toda e qualquer atividade humana. Não há uma só atividade humana que não dependa diretamente de ações éticas prévias, ou que não seja essas ações mesmas. O fato de termos chegado à idade adulta envia a um passado onde inúmeras pessoas agiram para conosco no sentido de permitir tal crescimento, do ponto de vista físico, psicológico, etc. Bastaria que apenas uma delas agisse de forma inversa – assassinando-nos, por exemplo – para que aqui não estivéssemos, pensando justamente em nosso passado. O fato de que tal não aconteceu é a condição de nossa vida. Retornamos ao primeiro postulado: o agir ético humano é a expressão da não-neutralidade da vida. Assim, como disse Ludwig Wittgenstein certa vez, “a ética não trata do mundo... a ética deve ser uma condição do mundo...”. E a ciência, não enquanto razão instrumental ou formal, mas enquanto expressão do sentido humano de uma relação não meramente objetivante com a realidade, é igualmente derivada dessa referência ética de fundo.
Desse modo, todas as questões humanas – das mais prosaicas e individuais aos grandes projetos coletivos das comunidades e das sociedades – apontam, em primeiro lugar para questões éticas de origem: sua origem é ética. Todas as grandes questões que devastam os seres humanos enquanto coletividade de vida têm fundo ético – da escassez da água às crises sócio-ambientais, das disparidades norte-sul à precariedade das instituições políticas, do buraco de ozônio às emissões tóxicas na atmosfera, das guerras maiores e menores ao contexto de violência, em infinitas formas, que vicejam em meio ao medo coletivo. E, especialmente, o que sintetiza tudo: a transformação da qualidade em quantidade, quer dizer, de vida em dinheiro, em sua expressão mais vulgar. Nenhuma dessas tão importantes e decisivas questões pode nem ao menos ser abordada senão desde o prisma de uma profunda questão ética a ser equacionada filosoficamente de forma muito séria, pois desse correto equacionamento pode vir a depender a sobrevivência da humanidade como um todo. Muito além da formalização, da disciplina, da instrumentalidade científica, a exigência da vida conduz à necessidade impostergável de uma reconsideração da racionalidade enquanto expressão de vida relacional na articulação “ser humano-mundo”. Essa é certamente a mais urgente e decisiva tarefa da racionalidade, ou seja, essa é a tarefa epistemológica por excelência do século XXI. Podemos, portanto, concluir essa breve reflexão com nosso terceiro e último postulado: pesquisa científica íntegra, ética e cientificamente, é aquela que assenta e se desenvolve desde e sobre a promoção da vida em todas as suas formas e em todos os seus sentidos, no espaço e no tempo, aqui e agora, na responsabilidade de um fazer que – etimologicamente, humanamente – responde pelo que faz, e o faz como expressão ética-ecológica da vida humana em relação com o mundo.


Referências bibliográficas

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SOUZA, Ricardo Timm de. – OLIVEIRA, Nythamar Fernandes de. (Orgs.) Fenomenologia hoje III – bioética, biotecnologia, biopolítica, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.


[1] Cf. nosso Totalidade & Desagregação – sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, especialmente p. 15-29.
[2] Cf. nosso Totalidade & Desagregação – sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas, op. cit., p. 15-29.
[3] Cf. nosso “Da neutralização da diferença à dignidade da Alteridade: estações de uma história multicentenária”, in: SOUZA, R. T. Sentido e Alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de E. Levinas, Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 189-208.

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