segunda-feira, 15 de abril de 2013

ESCREVER COMO ATO ÉTICO

ESCREVER COMO ATO ÉTICO


Ricardo Timm de Souza*




Escrever é entrar na afirmação da solidão onde o fascínio ameaça.
Maurice BLANCHOT


I

            Quem escreve com vigor e pertinácia, perseverança e ansiedade, sinceridade e energia concentrada, cuidado extremo e extrema coragem, despossuindo-se no ato de se entregar, pela escrita, à imponderabilidade de um destino aberto, esse sulca pequenas mensagens de estranha esperança, que encerra então delicadamente nas garrafas que serão lançadas no mar da incerteza. A verdadeira escrita é o mais pungente testemunho de deflação narcísica; não pode se dar onde o estilo é conspurcado pela menor das manchas de puro subjetivismo. A capacidade de suportar o externo que se coagula em obra escrita é rara; em um mundo no qual a sombra da indústria cultural a tudo ameaça cobrir, um universo da banalização e da mediania – do “culto do barato” –, no qual ghostwriters pululam em uma agitação frenética e as palavras transformadas em fogos de artifício se multiplicam infinitamente no espasmódico espetáculo da fatuidade, ser capaz de sentir o peso da palavra que desaba sobre sua própria solidão – esse ato de negação do banal – não é tarefa para pusilânimes. Envolve uma mobilização e uma concentração psíquicas que não se poderia suportar, não houvesse um movente que arranca do escritor até mesmo a consciência de sua real potência: uma voz clama, chama para fora de si aquele que se colocou no limite, mergulha-o na tensa convulsão das margens. O ato de escrever – sempre um kierkegaardiano ato de decidir – é também um ato de loucura.


II
            Mergulhar nas margens, deixar-se cair no abismo marginal – inverter a ordem natural da semântica – é condição de afloramento de uma promessa de vida possível pela agonia das palavras que aborrece toda e qualquer leviandade. Somente lá onde a esperança aparece como o ponto de fuga da realidade e dela, na conjuntura refletida, somente sobrou o rastro, os traços da presença ausente, somente lá a esperança das palavras brilha apesar delas mesmas, ou seja, o escrito brilha apesar do escritor. O que poderia se assemelhar a uma irresponsabilidade, a um ato leviano de entrega, traduz-se, pelas margens nas quais brota, a um pesado ato de hipoteca do sentido. Sentido que paira, às margens, para além da ideia de um conceito remotamente suficiente, contraindo-se num ponto preciso no qual toda antevisão sucumbe e toda confiança apressada naufraga – um ponto que promete apenas e nada mais que a si mesmo.


III
            Desfeita a teia dos encantamentos e sortilégios do caleidoscópio mental no qual as ilusões de segurança se gestam e se retroalimentam, exorcizada a colorida e promitente tentação do “não, ainda não”, sobra o agudo não; o estranho imperativo de uma responsabilidade desproporcional à aparente potência das palavras. Dissolve-se a lógica flácida que encobre a tensão original da solidão. O mundo não é mais a combinação das palavras, e então as palavras podem se transformar em abismo. As margens vibram: dá-se o tempo – e o tempo, medula dessa realidade, mostra-se às margens, atrator de uma reconfiguração estranha, improvável, do sentido. “Não”; essa é a palavra-mãe em cujo útero se agita o ainda não. Porém, agora, um “ainda não” que é a figura mesma da ansiedade da vida, que teve de passar pelas trevas mais absolutas e lá perdeu a capacidade de condescender com o leviano e o irresponsável – e é da vida feita, pelo desabar da ordem, a vida das palavras.


IV


            No rastro da depressiva penumbra: não. A desagregação do real deixa como traço um desencanto: a ilha está deserta. Concha a receber um conteúdo, receptáculo a acolher um novo – a desarticulação da linearidade criou a zona de sombras necessária para que a luz não ofusque o poder das palavras. Essas se dobram sobre si mesmas, vergam sob o próprio peso. De partículas elementares, tornaram-se mensageiras do absoluto – acolhem em seu recôndito o universo infinitamente contraído, a voragem desemboca em uma solidez intragável pelas ofertas de conciliação do banal. Algo resta: um “não”. Esse átomo pesado, esse pedregulho no andor da calmaria, é um germe persistente. Toda palavra real é, essencialmente, um “não” que subsiste. Subsiste no caldo das improbabilidades; desveste-se de quaisquer acusações de inconveniência, pois cria para si sua própria força de gravidade, o espectro palpável de sua própria sobrevivência. Subsiste, até mesmo, à sua própria imponderabilidade lógica.


V

            O não renasce renovado a cada vez em que se depara com a mais remota possibilidade de ocupação do real pela mesquinhez. Seus tecidos mais profundos são a alergia à condescendência. Afirma-se como negatividade radical ante cada detenção do fluxo da realidade; por isso, o não da escrita é seu próprio fluxo de realidade. Nega a promessa de felicidade que consistiria em atenuar a potência de sua lâmina que fende a espessa névoa do indiferenciado. Transforma-se em sua própria consciência, nos vários sentidos desse termo. Sua errância não é desatinada, mas agudamente vigilante de si mesma. Esse pedregulho, não erodível nas ondas suaves de uma realidade que solapa a si mesma a possibilidade do choque, vive do atrito. Tal como a ostra que gera a pérola a partir da irritação, gera no seu interior mais protegido a preciosa semente da sobrevivência desde o trauma que é seu destino congênito e constante.


VI

            No rastro da fatuidade das cores: não. A convulsão dos acontecimentos que significa a persistência do não, ou seja, a persistência sobrevivente da palavra real são fantasmagorias frenéticas que nada têm a ver com os bons espectros derridianos. Não convergem à inquietação da memória, mas a tumultuam com falsas promessas; a energia vital se esvai por entre os panejamentos desencontrados que a euforia delirante projeta no céu. A aspereza do não, que é sua dor e sua solidez, sobrevive às tentativas de digestão do fluxo tresloucado de imagens; sua característica arenosa, mimetizada como insignificância, contrai para o interior de si mesma as germinações de sentido que florescerão, talvez, em terra e tempo menos inóspitos. A ver.


VII – Interregno pictórico

Às vezes, gentes de um outro universo resolvem vir visitar a terra. São, nesse momento, identificadas com morfologias humanas, e sua humildade faz com que assumam inocentemente este papel. Espiam o mundo de todos os dias; sua curiosidade é de teor alegre, mas são vistas como pensativas. A documentação de uma destas visitas – paz dinâmica, simplicidade do acontecer – é dada por Picasso em “Figuras na praia”. Mas as figuras cedem à tristeza, finalmente, pelo que vêem; até enrubescem de vergonha, mas seu rubor é castanho.


VIII – Interregno musical

As grandes obras de arte parecem por vezes excessivamente cruéis. O segundo Concerto para Violino de Prokofiev zomba literalmente de quem quer domesticá-lo, reserva de si para um tempo não dado ao apreciador, finge ofertar o que esconde e esconder o que torna excessiva e insuportavelmente explícito. Obra anti-inercial, ser vivo, festeja continuamente o fato de se subtrair, enquanto organismo unitário e significativo, de toda tentativa feita para aprisioná-lo em um determinado esquema compreensivo; mas oferece ao apreciador esquemas que este nunca compreenderá totalmente da maneira necessária. É um Outro.


IX –

            Como escapar à sedução do conforto? O que vai finalmente significar a palavra derramada para além das bordas da naturalidade? Retome-se o itinerário. Está-se a falar não de um capricho, ou do desabrochar de um talento – e sim de um ato de loucura. Esse ato encapsula a possibilidade mais extrema de uma confiança enviada ao campo da mais extrema das imponderabilidades. A palavra se solidifica, vira pedra resistente, negativa em relação às forças das marés da condescendência. Corta-se o cordão umbilical com o autor, para que a autoria emirja no instante seguinte, o instante do não. Há uma esperança contraída em si mesma que se diz pelo ato paradoxal da escrita sincera. A figura é a de atirar-se no abismo das margens do real, para nele poder penetrar. Será a escrita outra coisa que o louco reafirmar de uma tal esperança?


X

            Se for verdade, como já disse o grande poeta, que “não há diferença essencial entre um poema e um aperto de mãos”, então se infere, pela potência do não, que também é verdade que não há diferença essencial entre a palavra verdadeira e um aperto de mãos com a alteridade, ou seja, com a realidade propriamente dita que advém para além do trauma da corrosão da inflação narcísica que a demiurgia das palavras e seu domínio parecem oferecer. Mas isso não é uma encenação. O autor se perde de si mesmo para que a palavra possa ser, ou ela não será. Ele apenas sobrevive de seus vestígios, dos vestígios de sua sinceridade que podem ser localizados em seus rastros, quer dizer, em seu estilo.


XI

            Escrever é um ato ético por excelência. A distância infinita que permanece entre a observação do abismo e o salto nele é aqui franqueada. O sangue da escrita é a fidelidade à sua própria exigência, e tal exigência se constitui, hiperbolicamente, na exigência do absoluto. Não existe escrita em meios termos; sua única honestidade é sua inteireza. A inteireza da escrita é o desfazer-se de suas silhuetas bem-delineadas. As entranhas da escrita são sua melhor aparência, são sua única aparência possível, a única fiel à mortal ousadia de fazer-se refém daquilo que, exatamente na escrita, aparece como mais propriamente ela mesma. Nenhuma escrita verdadeira passa; ela permanece trancada na voraz garganta do fluxo dos acontecimentos. Cada escrição verdadeira é uma inscrição definitiva. Inscrita no universo dos eventos, nenhuma força será capaz de desinscrever a escrita de sua posição inegociável. Esse é o referendo de sua esperança e a razão de sua confiança.


XII – Excurso testemunhal

“...O Oberkapo do 52. Kommando era um holandês: um gigante de mais de dois metros de altura. Setecentos prisioneiros trabalhavam sob suas ordens e gostavam dele como de um irmão. Ninguém havia sofrido uma agressão de sua parte, nem ouvido uma maldição de sua boca.
                Ele tinha sob seu serviço um jovem criado, um “Pipel”, como era chamado, uma criança com os traços do rosto bem desenhados, que não se adequava ao nosso campo de concentração. (...)
                Um dia voou pelos ares a estação elétrica de Buna. Chamada a Gestapo, concluiu esta por sabotagem. Localizou-se uma pista que conduzia ao bloco do Oberkapo holandês. Lá foi descoberta uma considerável quantidade de armas.
O Oberkapo foi preso. Torturado em vão ao longo de várias semanas, não forneceu nenhum nome. Foi enviado para Auschwitz e lá desapareceu.
                Mas seu ajudante permaneceu em nosso campo de concentração, na prisão. Igualmente torturado, permaneceu ele também calado. A SS condenou-o, juntamente com dois outros prisioneiros que haviam sido encontrado com armas, à morte.
                Certo dia, ao voltar do trabalho, vimos, montadas na praça principal do campo, três forcas. Ao redor, os SS com ameaçadoras armas, a cerimônia normal. Três candidatos à morte, entre os quais o pequeno Pipel, o anjo de olhos tristes.
                Os SS pareciam preocupados, mais inquietos que de costume. Enforcar uma criança na frente de milhares de espectadores não era coisa de pouca monta. O chefe do campo leu a sentença. Todos os olhos estavam dirigidos ao menino. Ele estava cor de cinzas, mas quase quieto, e mordia os lábios. A sombra da forca cobria-o completamente.
                Desta vez, o Lagerkapo negou-se a servir de carrasco. Três SS ocuparam esta posição.
                Os três condenados subiram simultaneamente sobre suas cadeiras. Três pescoços foram envolvidos simultaneamente pelas cordas da forca.
                “Viva a liberdade!”- gritaram os dois adultos.
O menino permaneceu calado.
                ‘Onde está Deus, onde está ele?’, perguntou alguém atrás de mim.
                A um sinal do Lagerchef foram as cadeiras retiradas.
                Fez-se absoluto silêncio em todo o campo. No horizonte, o sol se punha.
                “Retirar bonés!”- gritou o Lagerchef. Sua voz soou baixa. Nós chorávamos.
                “Colocar bonés!”
                Começou então a marcha diante dos executados. Os dois adultos não mais viviam. Suas línguas azuladas pendiam fora da boca. Mas a terceira corda não pendia imóvel: o leve menino ainda vivia...
                Mais de meia hora ficou ele lá pendurado e lutou, frente aos nossos olhos, entre vida e morte. E nós tínhamos de olhá-lo no rosto. Ele vivia ainda, quando passei por ele. Sua língua ainda estava vermelha, seus olhos ainda não estavam apagados.
                Atrás de mim ouço o mesmo homem perguntar:
                ‘Onde está Deus?’
                E ouvi uma voz atrás de mim responder:
                “Lá - lá está ele, na forca’.
                Nesta noite, a sopa teve gosto de cadáver.”[1]


XIII

            A essência da escrita é o testemunho de sua honestidade, do ato ético no qual escrever se constitui; o resto se dilui em circunstância e é devorado pelo tempo. O “não” da escrita é seu presente inquieto, que frutifica para além dele e encontra o tempo. A escrita verdadeira entrega-se a si mesma – e a nada mais – à imolação que a incerteza abissal e a angústia do não-consumado significam sempre de novo, cada vez que coincidem com seu sentido. Mas, também, a escrita verdadeira encontra-se a si mesma no radical ato ético que significa voltar-se inteiramente para fora de si mesma, com a finalidade confessada de encontrar a si mesma. A potência da linguagem somente assume sentido no despojamento obsessivo do que a poderia tornar serva de um interesse de encobrimento: um ato ético não suporta a sinuosidade postergatória do real e a expulsa aos confins da insignificância à qual pertence. A angústia do menino leve demais para morrer na ponta da corda dos carrascos, pesado demais para viver pelo seu próprio peso ontológico do qual a ética está ausente, é a angústia da palavra falsificada, da construção postiça, da escrita indecente. A noite que cai é a permanência de uma gravidade que relembra, à escrita, que ela não pertence à vulgaridade.
            Coragem, eis a palavra-mãe; ela sela a garrafa na qual o escritor honesto, num ato de loucura, encerrou todas as suas esperanças. Sua medula é a eticidade de um gesto que, por sua própria substância, subsiste e se impõe às ardilosas artimanhas da conivência com o insuportável. E “o resto é silêncio”.


[1] WIESEL. Elie. “Die Nacht zu begraben, Elisha” - Sonderausgabe aus Anlass der Verleihung des Nobelfriedenspreises 1986, 1986, Bechtle Verlag (tradução nossa).

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