segunda-feira, 15 de abril de 2013

ÉTICA COMO FUNDAMENTO

ÉTICA COMO FUNDAMENTO

Uma introdução à Ética contemporânea



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Ricardo Timm de Souza

2004



Revisão: Marcos Melamed Barqui











PREFÁCIO



            Ocorre atualmente, nos mais variados âmbitos de pesquisa científica, seja no nível do estudo e da produção do conhecimento, seja no nível da administração institucional destes processos de criação, em termos de reflexos de exigências sociais, uma crescente demanda pelo nível ético de ponderação, ou seja, pela legitimação ética das ações desenvolvidas e da administração dos resultados obtidos. O crescimento da exigência de legitimação ética da atividade intelectual, em todos os níveis, é muito evidente, em termos de estudos e pesquisas de ponta, em todas as áreas. Tal se exemplifica de forma eloqüente, por exemplo, na criação e qualificação de comitês de ética diversos, nas mais diferentes frentes de pesquisa e aplicação de conhecimentos, bem como pelo interesse demonstrado, em muitas instâncias acadêmicas e sociais, pelo estudo da ética geral e da ética aplicada a formas de conhecimento e atuação específicas.
            Em nossa longa experiência no trato do tema, na docência universitária e no acompanhamento de pesquisas em variadas áreas do conhecimento, tornou-se evidente a necessidade de uma obra sobre ética que fosse simultaneamente acessível, dirigida especialmente a questões éticas contemporâneas de base, e com sólida fundamentação filosófica. O presente livro é, em termos de resposta este desafio, o resultado de nossa abordagem dessa complexa constelação de exigências, à primeira vista incompatíveis entre si. A demanda de várias gerações de estudantes, em diversos níveis de formação, e de colegas, pela confecção de um trabalho deste tipo – demanda expressa em sua interlocução interdisciplinar conseqüente e profunda -, acabou se transformando em encorajamento para a redação do presente livro.
            É evidente, portanto, que, se a presente obra tem algum mérito, esse mérito é essencialmente coletivo; o que fazemos, aqui, é assumir a responsabilidade pela redação de um trabalho que pretende oferecer aos interessados alguns subsídios para o aprofundamento da reflexão desta questão fundamental para todos os níveis da vida contemporânea: a fundamentação da ética enquanto tema decisivo, em meio à complexidade do mundo atual, nos mais diferentes campos do saber e da vida quotidiana dos indivíduos e das sociedades.


Porto Alegre, dezembro de 2003.



INTRODUÇÃO



            Em todos os ambientes acadêmicos, administrativos e organizacionais, e em ressonância com uma profunda inquietação social, a palavra “ética” tem se tornado, especialmente desde meados da última década do século XX, mais e mais presente. Como se correspondesse à emergência inesperada, na superfície da terra, de veios e rachaduras por onde flui a fumaça oriunda das profundidades, e que anuncia uma erupção de um vulcão distante ou aparentemente extinto -, a palavra “ética” se insinua em discussões as mais diversas, irrompe no corpo dos discursos, faz-se presente, de forma muitas vezes incômoda, em documentos e libelos os mais variados, que pretendem desenvolver linhas de desenvolvimento de instituições, programas, eventos da mais variada ordem – especialmente em termos educacionais, jurídicos, científicos e tecnológicos. Tornou-se não só adequado e pertinente – para não lançarmos mão do lugar-comum “politicamente correto” – introduzir o termo “ética” nos mais variados meios e contextos, uma espécie de chancela legitimante da qualidade e das pretensões dos discursos.
            Isso, porém, não significa absolutamente que haja um domínio social mínimo dos níveis semânticos desta que é, na sua origem e essência, uma categoria filosófica de grande complexidade e longa evolução. Pois o fato é que se fala de “ética”, geralmente, com uma espécie de confiança subliminar em uma pretensa potência auto-explicativa dessa categoria. E esta confiança não advém, na quase generalidade das vezes, de uma consciência dos sentidos diversos desse termo, ou de sua gravidade; ela aparece como uma espécie de resposta a uma difusa consciência de uma exigência social ampla, de muito difícil compreensão, mas que se articula com a especificidade dos tempos que vivemos – tempos de fronteiras em todos os sentidos[1].
            Esta não-consciência suficiente das implicações e sentidos – não apenas filosóficos – da categoria “ética” traz consigo perigos consideráveis; perigos de generalização inconseqüente, ou, mais grave, de banalização ou manipulação conceitual. É necessário, portanto, que se repensem continuamente as dimensões realmente significativas do termo “ética”. O presente trabalho insere-se nessa linha de argumentação: é necessário reconsiderar continuamente os significados do termo “ética”, para que se possa encontrar a cada momento o equilíbrio máximo entre o rigor teórico e a disponibilidade responsável do conceito. E este é o objetivo maior deste texto: manter a argumentação no ponto possível de equilíbrio entre a fundamentação teórica mais rigorosa possível – ainda que não explícita no discurso – e a acessibilidade responsável que viabilize a utilização intersubjetiva do termo “ética” de forma filosoficamente sólida e defensável por não-especialistas.
            O presente livro, que condensa uma longa experiência no trato filosófico das questões éticas tanto com estudantes de filosofia como com estudantes de várias outras áreas do conhecimento, da medicina e da psicologia à ecologia e ao direito, bem como na interlocução com colegas de muitos campos científicos e com participantes, os mais diversos, de seminários extra-acadêmicos preocupados com o tema, pretende assim se constituir em uma introdução, simultaneamente acessível e filosoficamente bem embasada, à reflexão sobre as grandes questões éticas contemporâneas.
            Algumas características perpassam então este trabalho, devido à especificidade a que se propõe.
            Em primeiro lugar, trata-se de uma obra introdutória. Temos como objetivo explícito, aqui, uma introdução às questões éticas relevantes, e não sua explanação erudita ou seu esgotamento filosófico e sistemático. Pretende-se que o presente trabalho se constitua, muito mais, em um convite ao aprofundamento das questões, do que em algum tipo de summa que resumisse ou viesse a dar forma acabada à questão ética (questão, aliás, obviamente inviável – vivemos um tempo onde a mera pretensão de esgotamento no trato de uma questão cultural conforma-se, ou como excessivamente ingênua, ou como definitivamente hipócrita). Como todo e qualquer livro de filosofia, o presente trabalho opta por determinados pontos de partida, determinados modelos de desenvolvimento argumentativo, e chega a determinadas conclusões, que muito têm a ver, não só com as convicções filosóficas de seu autor como, igualmente, com seu modo específico de achegar-se às questões trabalhadas.
            Em segundo lugar, não se trata de um trabalho histórico: não queremos resumir, em poucas páginas, a vastidão de estudos históricos sobre o tema, nas mais diversas culturas e em sua extrema riqueza de sugestões. Não temos aqui uma história da ética; temos, antes, em certo sentido, uma breve ética da história contemporânea, em suas diversas manifestações.
            Em terceiro lugar, trata-se de uma obra seletiva; as limitações de espaço conduzem, necessariamente, a limitações estratégicas no trato da questão. Essas limitações, porém, obedecem a uma lógica muito clara, que advém da nossa visão geral da questão enquanto tal, em suas dimensões particulares. Assim, certos temas importantes estarão ausentes, mas sua ausência deve se transformar igualmente em um convite à sua investigação, consoante os interesses dos leitores.
            Em quarto lugar, temos aqui um trabalho de ética contemporânea, ou de ética aplicada à contemporaneidade. Isso significa que surgem como temas de relevância de pesquisa, especialmente, aqueles temas que dizem respeito ao pesquisador das grandes questões éticas que se apresentam hoje em dia, no decorrer específico do dia-a-dia das diversas questões éticas que surgem nos igualmente diversos campos do saber. Ou seja: tratamos de questões de base de legitimação de modelos de pesquisa, de resolução de questões concretas, de dilemas do aqui e agora com que se defrontam pesquisadores e cidadãos na concretude de seu dia-a-dia. Neste sentido, o livro pretende ser mais do que uma reflexão teórica sobre a ética.
            Em quinto lugar, trata-se de um trabalho que se pretende filosoficamente bem embasado. Com isso queremos dizer, simplesmente, que o horizonte interpretativo das questões e dos encaminhamentos de soluções, tem na filosofia – e não em outra ciência ou campo do saber, como a teologia ou a jurisprudência, – sua referência de fundo e se estatuto de legitimação radical. Existiriam, naturalmente, muitas opções de definição filosófica deste horizonte de referencialidade; a opção aqui tomada, naturalmente, corresponde á forma como o autor, especificamente, entende poder fundamentar a investigação.
            Por fim, em sexto lugar, e como se depreende facilmente do acima exposto, este livro no seu todo é antes de tudo um convite: um convite ao mergulho no trato destas questões, que são, a rigor, as questões definitivas não só da vida humana, mas da vida em geral, no trato dos grandes dilemas sócio-ecológicos atuais.








Capítulo 1 – O PONTO DE PARTIDA: A ÉTICA E A CONDIÇÃO HUMANA




            A Ética não é um elemento a mais a ser levado em consideração quando se pensa sobre a questão filosófica fundamental: a condição humana. Em verdade, a Ética é o fundamento da própria possibilidade de pensar o humano. Essa afirmação pode parecer estranha à primeira vista, mas esta estranheza se desfaz muito rapidamente, quando os termos definidores da questão são examinados com propriedade filosófica. Pois a própria idéia de pensar pressupõe a Ética. Não existe pensamento fora de alguém que pensa, e esse alguém não é uma mônada fechada em si mesma, mas, de algum modo, o fruto de relações – seja no âmbito de sua gênese biológica (ninguém nasce senão de seus pais), seja em termos de sua geração social e histórica (ninguém existe fora de uma cultura e de uma língua que o acolhem, ou fora de estruturas materiais que o sustentam). Ser humano é provir e viver na multiplicidade do humano. E não qualquer multiplicidade, mas multiplicidade qualificada ou, exatamente, em termos filosóficos, multiplicidade ética, do agir de uns com relação aos outros e dos sentidos deste agir. Pois, para que a gestação tenha chegado a bom termo, é necessário que nem nossa mãe, nem todos os que a apoiaram houvessem agido de forma , pelo menos não a ponto de impedir nosso desenvolvimento. O mesmo se dá, evidentemente, em cada um dos momentos de nossa vida, não apenas daqueles por nós facilmente percebidos como decisivos ou extremamente importantes, mas igualmente naqueles, aparentemente coloquiais, aparentemente irrelevantes, que constituem propriamente o dia-a-dia de nossa vida, a teia dos momentos que vivemos na cotidianidade. Em suma: em todos os momentos de nossa vida, define-se em cada situação a continuidade de nossa existência, não através de atos indiferentes, mas na especificidade única e não-neutra de cada ato. Um ato qualquer, isolado, pode tanto fazer viver como fazer morrer; embora tal coisa seja claramente perceptível nos grandes instantes decisivos da vida, onde a vida e a morte se encontram – tanto um ato heróico de sacrifício por outrem como um ato que mata outrem, tanto uma intervenção cirúrgica bem sucedida como a destruição de aspectos da vida – na verdade tal fato se dá, de um modo ou de outro, em todo e cada um dos instantes da existência. Não há instante neutro ou indiferente há vida; há apenas instantes que conspiram ou para a continuação e promoção da vida, ou para sua corrosão e destruição. E isto por um motivo muito simples: o ser humano é o ser não-neutro por excelência. Essa não-neutralidade é simultaneamente o resultado da reflexão original sobre a condição humana e a possibilidade de tal reflexão.
            Ética é, assim, o fundamento da condição humana que vive e medita sobre si, sobre seu lugar, sobre sua casa, sobre seu mundo: ética é, neste sentido, essencialmente, uma questão eco-lógica (de oikos: casa, lugar, e logos; reflexão sobre). E, em assim sendo, ética é o fundamento de todas as especificidades do viver, em suas mais complexas relações e derivações, das ciências e da tecnologia, da história das comunidades e da própria filosofia.



Capítulo 2 – ÉTICA E ECOLOGIA



            Que é verdade, como vimos, que a ética é uma fundamental questão da condição humana, ou talvez seja a questão da condição humana, e que a condição humana é uma questão ética fundamentalmente, então tudo aquilo que envolve a questão humana, tudo aquilo que se constitui nas circunstâncias onde o humano se entende como tal, tem interesse eminente para a ética.
         Poderíamos dizer ainda mais; poderíamos dizer que a relação entre ética e condição humana nessas condições é indiscernível. Em verdade, como poderíamos distinguir entre uma dimensão do agir que é refletida a posteriori por quem pensa a condição humana, e a própria condição humana de quem pensa o agir? Estamos portanto em uma espécie de circulo interpretativo. O grande risco que agora corremos é nos quedarmos encerrados neste círculo em uma estrutura de desconsolo ou de finitude que nos impeça de transcender os limites próprios que a própria condição humana nos impõe. Sabemos que a ética é relação, e relação com o outro, com a alteridade; mas, será possível, no interior da estrutura de finitude na qual vivemos, conceber a possibilidade da própria alteridade? Será possível que nos relacionemos com seres que estão para além dos limites estreitos das nossas representações, dos nossos pensamentos, que surgem quando meditamos na profundidade da condição humana? Este é o tema deste capítulo.
         Que não se entenda aqui ecologia como uma ciência, ou ramo específico de uma ciência qualquer, tal como a Biologia ou outra. É necessário que se entenda aqui ecologia, no sentido próprio do termo, que vem de “oikos” e “logos”, termo composto que reúne estas duas palavras num sentido muito próprio. Ecologia é entendida por nós como sendo a dimensão de articulação, de reflexão, de compreensão e explicação do lugar, da casa, do mundo, que habitamos, que vivemos, que é a sede de nossa condição humana, no momento em que esta condição humana reflete sobre si mesma. Assim, Ética e Ecologia se imbricam de forma muito precisa e muito clara. Podemos, para abordar esta questão desde um ponto de vista ao estilo das reflexões que temos até agora conduzido, tentar entender o tema da seguinte forma: não há questão ética, ou seja, não há questão humana, que não seja uma questão ecológica, assim como não há questão ecológica que não seja, por sua própria essencialidade eco-lógica, também uma questão humana. Ética e ecologia não estão apostas como se fossem dois termos oriundos de proveniência muito diferente, uma do ramo da filosofia, outra do ramo da ciência, que aqui artificialmente estivéssemos juntando. Na verdade, o que nos permite pensar desde o nosso preciso lugar no mundo, é justamente, como tentamos deixar claro no primeiro capítulo deste livro, a nossa estrutura ética de base. Esta estrutura ética de base não apenas nos permite pensar o lugar onde vivemos, a casa onde habitamos, o mundo no qual nos entendemos; ela exige que tentemos compreender e nos relacionar com este universo que nos cerca e que de alguma forma também somos nós.
         A ética é impensável fora de um lugar de sua realização, porque, como já sublinhamos suficientemente neste trabalho, não estamos aqui entendendo ética como uma dimensão utópica de realização prescritiva, ou como uma ordenação explanativa de termos. Estamos aqui entendendo ética como substância humana da própria humanidade. Ora, o que pode ser mais importante para a humanidade do que pensar e realizar a si mesma, e onde poderia a humanidade, o ser humano, pensar e realizar a si mesmo senão no seu universo, aqui compreendido desde o ponto de vista de uma espécie de nicho ético-ecológico? Portanto, é desde um nicho ecológico, desde uma fresta ecológica que pensamos, agimos, e vivemos. É neste fulcro que construímos o sentido de realidade que permite que nos relacionemos conosco mesmos e com tudo e todos os que nos cercam. As grandes questões ecológicas não são meramente cientificas, elas são fundamentalmente, questões éticas; elas e a sua solução – ou não-solução -, é que virão a definir o futuro do próprio ser humano na terra, sua casa maior. Portanto, como podemos facilmente entender que aquilo que define o futuro do ser humano é justamente a sustentação ética do seu ser, então é fácil depreender que a questão ecológica é uma questão ética na sua origem e no seu sentido; aliás, não é necessário uma reflexão assim tão sofisticada para percebermos aquilo que os cientistas mais lúcidos vêm percebendo nos últimos tempos: que não existe questão ecológica que não seja uma questão humana, assim como não existe uma questão humana, uma questão social, que não seja uma questão ecológica.
         A divisão metodológica que se faz quando se categoriza ecologia como uma ciência especial é procedimental, e não essencial. Na verdade, “ecologia”, enquanto percepção, compreensão de seu habitat, dos lugares do habitat do mundo em que vivemos, é na verdade a base de toda a ciência, porque não existe ciência sem um lugar para essa ciência ser realizada. A ecologia, nesse sentido, como aqui a compreendemos, é todo um desdobramento ético da auto-compreensão do ser humano no lugar que habita, que funda, de onde provém, e que convém cuidar em termos de perspectiva de futuro. As grandes questões ecológicas com que hoje nos deparamos não são questões que alguém pensou em algum momento inspirado ou em uma intuição científica: as grandes questões ecológicas são desdobramentos da incompreensão original da base ética, fundamental, que articula os seres humanos entre si e com os outros seres. Temos assim, com bastante clareza, que ética e ecologia não podem ser pensadas sem uma mútua referencialidade de índole muito própria e muito aguda. Ética é o agir próprio do ser humano no exercício de sua liberdade, e que se dá em um lugar, em um locus específico do universo. Ecologia é a compreensão deste locus, compreensão, que como vimos, apenas se pode dar a partir de um fundamento ético que permita pensar, que permita a reflexão. Desta forma, podemos concluir com facilidade que ética e ecologia estão, na verdade, muito mais próximas do que normalmente se pensa, ou do que podemos conceber quando, em uma grande biblioteca, temos que nos dirigir a seções muito separadas umas das outras para nos aprofundarmos teoricamente em cada um desses assuntos.
         Cabe ainda uma reflexão final neste capítulo: colocamos ao início a indagação, indagação que acompanha a muitos filósofos e pensadores, sobre a possibilidade ou não de relação com o que está para além dos limites intrínsecos, ou assim pensados, de nossas representações. Será possível a relação com o outro? Não será tudo isso nada mais que uma quimera, ou desejo, que nunca será satisfeito, e que aqui entra no campo dos impossíveis com um ar de sedução que faz com que servos brilhantes se percam por sendas já anteriormente perdidas? Ora, parece-nos que justamente as grandes questões ecológicas, na sua incisividade, na sua gravidade impostergável (que só não são percebidas por aqueles que nisto não tem interesse), parece-nos que estas questões por elas mesmas nos puxam para além de nós mesmos, nos atraem para fora do círculo de auto-referência que a nossa subjetividade moderna configurou em termos de pensamento científico e filosófico. Pois vejamos: as questões ecológicas não são questões que podemos fingir desconhecer, elas são questões que determinarão o presente e o futuro da humanidade. Um pequeno exemplo é suficiente aqui: vejamos a questão da água potável. Caso não sejam reavaliadas e re-concebidas as formas de administração, uso e cuidado da água, teremos brevemente situações calamitosas que cercam este bem fundamental da vida, que se confunde com a própria vida. Ora, esta não é uma questão que possamos fingir não existir, é uma questão que nos atrai para fora de nós mesmos, é uma concretude absoluta, é uma questão de alteridade concreta. A água, da qual dependemos absolutamente, em todos os termos e sentidos, para viver, e da qual dependem não só nós, mas todos os outros seres e as gerações vindouras, é um elemento outro em relação às nossas representações; trata-se de um elemento de uma concretude tão extrema que nenhuma representação é capaz de substituir, e as questões que traz a sua administração à reflexão sobre o seu sentido de preservação, a questão ecológica na qual se constitui, é uma questão que está para além das questões que o nosso cérebro, às voltas com suas habilidades próprias, seria capaz de destilar. Temos portanto, aqui, a prova de que não estamos sozinhos no mundo, e para essa prova não necessitamos de uma complexa referência (que é evidentemente passível de ser executada), sob a qual, na verdade, se embasa toda a nossa argumentação da existência do outro humano; é suficiente para tal, pensarmos num elemento “químico”, para que se perceba indelevelmente, de forma definitiva, a alteridade que está para além das nossas representações. Ora, se é verdade que a ética é relação com o outro, então este pequeno sinal, que na verdade é um gigantesco sinal de existência da concretude, rearticula a própria metafísica, rearticula o próprio pensamento em torno a alguns eixos diferentes daqueles com os quais estamos normalmente acostumados. O pensamento como que sai de si mesmo, não para conquistar o que não é ele, não para analisar ad infinitum tudo aquilo que está no âmbito do alcance da sua luz, mas para se relacionar com aquilo que não é ele. Teremos oportunidade de aprofundar este tema no capítulo intitulado “Ética e Ciência”; por agora, seja suficiente dizermos que pretender pensar o presente e o futuro na ignorância de tais questões ecológicas, sejam ignoradas, não é apenas a negação do próprio pensamento, mas é a negação da própria vida. Temos aqui, então, uma nova corroboração daquilo que foi anunciado no primeiro capítulo. O universo que podemos aqui conceber como sendo a multiplicidade dos múltiplos existentes se constitui não em uma espécie de conjunto infinito de elementos analisados por uma racionalidade instrumental, mas pelas relações que estes múltiplos existentes estabelecem mutuamente em seu conjunto na construção do sentido que somos (ou não) capazes de captar[2]. A racionalidade então, também é, de certa forma, subvertida; pelo menos, a racionalidade tal como estamos acostumados a pensá-la na tradição de uma filosofia que gostaria de retirar de cada coisa a sua essência. “Racionalidade” passa aqui a ser considerada uma dimensão ética da própria realidade, e “dimensão ética da própria realidade” significa nada mais, nada menos, do que quebrar os espelhos que configuram o sedutor quadro das reflexões que emprestam àquele que pensa a ilusão de infinito quando está lidando, na verdade, com coisas finitas. A reflexão é uma arma poderosa, mas o seu contra-veneno é muito necessário. Este contra-veneno constitui na relação que somos capazes de estabelecer com o que não é nós mesmos.





Capítulo 3 – ÉTICA E POLÍTICA



A partir do que vimos do capítulo anterior, podemos depreender facilmente que temos, aqui uma semente de algo como uma racionalidade ética, uma racionalidade que tem sentido na sua dimensão ética propriamente dita, uma racionalidade que não existe sem que a sua dimensão ética seja a própria medula do que de racional ela possui. Por que? Porque “racionalidade” significa aqui se relacionar para além dos reflexos que o pensamento é capaz de destilar para si mesmo. Racionalidade significa relacionar-se com a realidade, e a realidade não está presente, ou pelo menos não está presente de forma concreta e absoluta, no interior da lógica do próprio pensamento que pensa: há sempre algo para além daquilo que somos capazes de pensar, e, se assim não fosse, teríamos a onisciência. Portanto, é com base nesta dimensão de racionalidade ética que podemos retornar a dimensão da ética como fundamento das relações humanas, aquilo que aqui, neste livro, temos considerado central para toda a nossa argumentação.
Neste capítulo, interessa-nos pensar introdutoriamente a relação entre ética e política. Reservamos à segunda parte deste trabalho, no capítulo intitulado “Por uma teoria da responsabilidade social - a ética política na práxis das relações humanas”, o estudo de dimensões exemplares da relação entre o ético e o político; porém, interessa-nos aqui, na linha argumentativa que temos desenvolvido até agora, e preparando o que a seguir virá, dedicar atenção a este tema no presente contexto.
Qual a relação entre ética e política? Evidentemente, muito se tem falado sobre isso. O que acontece, porém (e muitas vezes trata-se de um elemento invalidante na aproximação destes conceitos), é que há uma tendência muito forte de separá-los epistemologicamente. Isso tem lá suas razões técnicas, filosóficas e sociológicas muito consideráveis. Todavia, podemos talvez, a um exame mais profundo das questões, ousar superar os pudores científicos que normalmente classificam tais disciplinas, ou tais âmbitos de conhecimento, em campos tão separados. Pois vejamos: o que é a política senão a arte de viver na pólis, na cidade, no mundo? O que é a ética, no sentido que aqui tratamos, senão exatamente a mesma coisa? Evidentemente, estamos falando de uma forma aproximada; não nos interessa confundir ética e política, interessa-nos mostrar como a “ética”, na verdade, é inconcebível sem uma vida na cidade, por que a vida na cidade (e por “cidade” entendemos a configuração de uma comunidade humana) significa exatamente a concreção das relações humanas. Assim como “política”, em termo próprio, é inconcebível sem relações éticas, pois “política”, viver na pólis, conceber, criar, desenvolver e preservar a pólis, pressupõe igualmente relações humanas. Não adianta concebermos tecnicamente a idéia de política, e então nos preocuparmos em apor a esta idéia, ou a esta concepção, dimensões éticas regulativas. Não adianta partirmos do “status quo” e, em nome do equilíbrio de uma filosofia política que tente contentar interesses diversos, estabelecer estruturas intelectuais de equilíbrio e de mediania, que acabem por fracassar em suas intenções por ignorarem lógicas reais de poder ou por pretender que convivam pacificamente interesses inconciliáveis, porque mutuamente excludentes em termos de uma convivência ético-política sadia[3]. Temos é que pensar já desde o início a possibilidade da não-separação destas duas dimensões. O fruto desta cisão de origem entre ética e política nada mais é do que aquilo que podemos observar diuturnamente, sem entender, normalmente, suas razões: estruturas de violência que se reproduzem infinitamente. Ou seja: viver na cidade e não viver eticamente significa aquilo que temos visto a cada dia nas nossas grandes cidades, bem como na situação micro-política e macro-política do mundo. Porque se pensou que se podiam estabelecer, cientificamente, estruturas políticas que, por alguma espécie de geração espontânea, dessem lugar “naturalmente” a relações éticas necessárias, é que vivemos os atuais dilemas (como exemplos contundentes, a violência e a corrupção), tanto em nível próximo, micro-geográfico, como na macro-geopolítica que governa o mundo e que nos tem levado a impasses de dimensões extraordinárias. Todos estes temas serão detalhados no capítulo referente à responsabilidade social. Mas, neste momento, é possível destacarmos o fato de que conceber um lugar onde pessoas vivam sem que esteja presente de forma muito clara, já na estrutura desta concepção, a dimensão relacional das pessoas que ali viverão (e relacional quer aqui dizer eticamente sustentável), significa uma quimera de proporções muito maiores do que aparentam ser, caso estejamos vivendo apenas no mundo das considerações pragmáticas. É por isso que filosofias políticas que têm como base de fundamento, ou como pano de fundo, ou horizonte de sentido, o reequilibrio de dimensões desequilibradas do ponto de vista de macro-políticas e de ética enquanto relações humanas concretas, diárias, entre as pessoas que ali vivem, tendem necessariamente a fracassar. O seu cabedal teórico acaba sendo seqüestrado pelo lado que dispõe de maior poder de sedução intelectual, ou que é capaz, por exemplo, de justificar a injustiça em nome da ordem. As filosofias políticas de equanimidade econômica, de redistribuição de bens, de equilíbrio de direitos, são todas muito plásticas na sua apresentação; pecam porém, por haverem ignorado a origem comum da própria idéia de filosofia como o núcleo ético de sua geração e da própria idéia de política como um lugar onde economicamente (ou ecologicamente) se relaciona. Relações desequilibradas não podem ser corrigidas por paliativos; a sociedade deve ser refundada sobre bases humanas, e não sobre bases procedimentais que pretendem contemplar interesses que oscilam conforme a capacidade de a negociação ou a força de uma das dimensões disputantes. Por isso, ética e política, como ética e ecologia, estão intrinsecamente imbricadas. Pensar uma nova sociedade sem pensar nessa imbricação é pensar uma quimera. Tentar corrigir dilemas éticos com soluções políticas paliativas, ainda que filosoficamente aparentemente bem organizadas, não passa de uma postergação daquela questão que a rigor se propõe, ou seja, como refundar a possibilidade humana da convivência em um mundo com dilemas sócio-políticos gigantescos, desafiadores, e que levarão, caso não sejam solucionados, à destruição de sua própria estrutura de sobrevivência, inviabilizando não só a vida dos contemporâneos mas também a das gerações futuras.
Cremos agora, a partir do que aqui já desenvolvemos, poder propor, inclusive, uma espécie de definição de política: política é a capacidade de conceber uma estrutura ética de convivência que permita a cada ser relacionar-se o mais saudavelmente possível com cada outro ser. Toda e qualquer política que não contemple exatamente estas dimensões, ou que descure da gravidade que estas dimensões significam para a sobrevivência da vida na terra, nada mais são do que falsidades, que estão se substituindo nas dimensões concretas da vida, e cujo futuro pertence ao reconhecimento doloroso do seu fracasso.





Capítulo 4 – ÉTICA E INSTITUIÇÕES



Vivemos em um mundo de extrema complexidade. Isto vem sendo destacado pelos mais eminentes pensadores da nossa era. Qualquer um percebe a que ponto, contemporaneamente, a complexidade nos penetra, a que ponto penetramos a complexidade do mundo. É evidente que isso não poderia deixar de acontecer no campo das organizações que, de algum modo, estabelecemos para viabilizar as formas de relações do ponto de vista de instituições criadas para a preservação da vida. E, aqui, fique bem claro: por instituições, não entendemos senão isso: tentativa de organização social fundada à preocupação original e inarredável de preservação da vida.
Este capítulo trata da questão da relação entre a ética e as instituições. Qual seria esta relação? Ora, segundo o que até aqui temos proposto, não poderia ser esta relação outra, senão uma relação fundacional. Ou seja, uma instituição que não tenha por base permitir a possibilidade de relações eticamente saudáveis entre seus membros, é uma instituição vocacionada ao fracasso, ou à formalização violenta de suas estruturas (tantas vezes observável em instituições reais) que acabam por denunciar à contemporaneidade, pela violência a que sujeita os indivíduos em nome de uma vaga generalidade ou formalidade, a sua desumanidade e as suas dimensões anti-sociais e antiecológicas. Toda a instituição que não seja capaz de contemplar esta preocupação vital fundamental – a saber, de uma relação eticamente saudável entre os indivíduos, numa expressão da política atrás expressa -, e não apenas das relações dos seres humanos uns com os outros, mas dos seres humanos com todo e qualquer ser vivo e com a natureza em geral, é uma instituição que tende necessariamente a fracassar e a abortar a sua profissão de existência.
Estas reflexões nos conduzem ao redimensionamento histórico das próprias instituições já existentes. Quais das instituições existentes são fiéis à vida? Quais as instituições existentes promovem condições que permitem não só a sobrevivência dos indivíduos, mas a sua vida propriamente dita enquanto conteúdo de realidade mais próximo delas mesmas? Por outro lado, quais são as instituições atualmente vigentes que não fazem senão mutilar, ou mesmo impedir, que a vida possa se desenvolver em toda a sua exuberância? A resposta a esta questão, é uma resposta decisiva, que nos conduz à reconfiguração histórica e social das instituições hoje existentes. Ressaltemos uma vez mais: evidentemente, temos para esta reconsideração um parâmetro muito claro de validade, e este parâmetro não pode ser senão ético. Instituições que têm vida própria e que funcionam como grandes, imensas, máquinas anônimas, a bem da produção de riquezas ou da reprodução de poder, nas quais os indivíduos não passam de engrenagens substituíveis, são instituições que nada têm a ver com a vocação humana, e, portanto, são instituições, absolutamente antiéticas. Não têm como subsistir em um mundo pensado nos moldes que aqui estamos propondo. Pensar, por outro lado, no seu aperfeiçoamento, é algo que nos parece, até certo ponto, improvável. Na verdade a instrumentalização da razão, a razão instrumental, tal como chamavam, por exemplo, Adorno e Horkheimer, é capaz de destilar monstruosidades onde as pessoas se sintam de certa forma pertinentes, sem que sua pertença seja concreta. Números que flutuam, símbolos que se substituem à carne e ao sangue de cada um de nós, estruturas estreitas, ordenações, lógicas anquilosadas, sistemas de poder, na verdade tudo isso se constitui numa espécie de repositório de neuroses sociais que, uma vez examinado a fundo, revelará nada mais do que uma extrema violência de origem, uma totalização que conspira, em todos os sentidos, contra a vida. Instituições deste estilo não são apenas antiéticas, elas são antiecológicas e antipolíticas, elas são anti-humanas e, portanto, não oferecem absolutamente nenhuma possibilidade de futuro; tratam-se de abortos daquilo que se poderia pensar ter ou dever ter uma instituição como tal. Instituições já são, por sua própria natureza, dimensões-limites do humano, ao formalizar o informalizável a bem da possibilidade de convivência nas sociedades, e não existem sem grandes dificuldades e tendências a oprimir o humano, e isso, muitas vezes, apesar de toda a boa-vontade ética de quem as pensou. O que dizer, agora, de instituições que, em nome de princípios políticos e econômicos, se pretendem substituir à vida como tal?
Uma implementação, uma instituição, uma formalização, muitas vezes acaba por afastar os seres humanos uns os outros, estabelece entre os indivíduos limites invisíveis que impedem a naturalidade das relações vitais mais fundamentais. Todavia, temos de reconhecer que, na complexidade do mundo atual, seria muito difícil sobrevivermos sem instituições reguladoras. O que é agora necessário, então, é que consigamos, com o crivo ético, no sentido que temos até agora desenvolvido, ser capazes de criticar a fundo a lógica de constituição e perpetuação de toda e qualquer instituição, em nome da ética.
Em suma: instituições que transformam pessoas em engrenagens e máquinas não são apenas antiéticas, ou anti-humanas, elas são antivitais. E, por isso, contradizem a própria lógica da vida, não podem subsistir. A vida, com o passar do tempo e no devido tempo, saberá, provavelmente de forma muito dolorosa, derribar estas monstruosidades que o ser humano é capaz de conceber e erigir, caso não sejamos lúcidos o suficiente para desconstruirmos aquilo que se constituiu de forma desumana. A ética é, portanto, também, uma espécie de crivo do sentido vital. Tudo aquilo que se formaliza a tal ponto que não se encontra mais com sua origem, tudo aquilo que se transforma em uma espécie de máquina semovente que não se compreende a si mesma, de tal forma que não é capazes de legitimar a sua própria existência em função da vida, não passa de algum tipo de monstruosidades anti-humana ou de figuras de um futuro museu teratológico. Substituir pessoas por números, por dinheiro, por palavras, por símbolos, é, do ponto de vista administrativo, da razão instrumental, muito útil; é porém, do ponto de vista da sobrevivência do planeta, inviável.
Eis então que assoma aqui a mesma imbricação necessária que examinamos na relação entre a ética e política. Uma instituição não pode ser concebida, em termos humanos, a não ser no sentido de originar-se da mesma semente da relação humana ética, saudável, pois esta relação saudável é o corretivo que a instituição necessitará constantemente para não degenerar em totalidade violenta. Assim como ética e política são, na profundidade de seu sentido humano, assim ética e instituição devem ser, no dia-a-dia concreto da vida institucional, tão próximas quanto possível (poderíamos dizer: interdependentes). Uma instituição que não tenha, na sua constituição mais profunda, na sua medula de sentido, a própria dimensão relacional humana, é uma instituição vocacionada ao fracasso. Ela não subsistirá aos momentos concretos que se sucedem no tempo e acabam expondo aquilo que está oculto em nome de grandezas ou jogos de poder ecológica e humanamente injustificáveis.




Capítulo 5 – ÉTICA E CIÊNCIA



É possível que a ciência seja a mais complexa, poderosa e influente das instituições contemporâneas. Desde seu nascimento, há muitos séculos, a ciência nada faz, senão se sofisticar, se multiplicar e estabelecer parâmetros de existência e validade em todas as dimensões da vida. O ser humano acabou por fazer da ciência a sua verdade racional, tendendo, especialmente na cultura ocidental, a fazer dela o seu ídolo ao qual tudo o mais – especialmente outras formas de racionalidade – é sacrificado.
Por outro lado, sabemos, pelo testemunho doloroso do século que acaba de findar, que esta ciência tem muitas faces, muitas dimensões, e está muito longe de ser compreendida em todo o seu potencial, tanto construtivo quanto destrutivo. Na verdade, boa parte daquilo que temos chamado a “esquizofrenia civilizatória do século XX”[4], ou seja, a convivência de situações absurdas do ponto de vista da vida e de sua sobrevivência com situações de avanço científico inusitado e extraordinário, tem a ver com o desconhecimento destes potenciais. A que poderia se dever o desconhecimento destes potenciais? A resposta a esta questão não é extraordinariamente difícil; podemos avançar (e este tema será desenvolvido mais adiante, no capítulo no qual trataremos da questão da relação entre ética e a manipulação genética) que, na verdade, uma das dimensões mais avessas ao controle externo é justamente a ciência, talvez, justamente, por ter esta nascido, pelo menos em sua feição moderna, como uma espécie de superação dos muros externos de controle de pensamento. Esta vocação de desenvolvimento, que pode ser percebida na forma de como a ciência foi destruindo uma série de barreiras a ela externas, do ponto de vista, por exemplo, filosófico, religioso e ideológico, acabou por se transformar no mote de seu próprio desenvolvimento. A ciência precisa de liberdade; ciência sem liberdade não existe. Esta retórica é, evidentemente, muito eloqüente, e tem a sua porção de verdade. Por outro lado, trata-se de uma retórica de uma extrema periculosidade. Há de se descobrir isso facilmente, na medida em que se descobre, por exemplo, as falácias do positivismo científico. A ciência, abandonada a si mesma e à sua própria lógica, é um animal selvagem e furioso recluso em uma sala repleta de obras de arte e cristais preciosos. Ele tentará sair da sala, e para isso quebrará muito do que ali se encontra. Em nome de sua liberdade, sacrificará muitos bens; em nome de sua sobrevivência, sacrificará muitas das dimensões também importantes, ou até mesmo, tão ou mais importantes que ele mesmo, que nesta sala se encontra. E esta é apenas uma das dimensões do problema. Mas uma dimensão que leva a desdobramentos muitíssimo perigosos, dos quais alguns são mui facilmente perceptíveis hoje em dia – por exemplo, a transformação da ciência em uma espécie de braço intelectual armado das lógicas de poder hegemônico.
Sabemos muito bem dos grandes dilemas que surgem no cérebro de qualquer criança quando descobre que, com uma pequena porcentagem dos gastos anuais com armas se poderia acabar com a fome no mundo. Que lógica é essa, que subjaz a esta questão humana? Propomos refazer a pergunta: qual a justificativa para tal fato? Evidentemente não se trata de uma justificativa ética.
Ciência e ética provém, diferentemente de ciência e ecologia, ciência e política, de fontes racionais algo diferenciadas na sua origem. Ciência, saber, iluminar, invadir a realidade, expor as essências, descobrir os núcleos da existência, ir até ande nunca outro ser humano tenha ido, estes sonhos modernos, todos eles têm como preocupação muito secundária o respeito por aquele que é o seu objeto, o objeto científico. Caso assim não fosse, não poderiam dissecá-lo, não poderiam analisá-lo. Mas a ciência não é analítica por natureza? Este é um dos dilemas centrais com os quais temos que conviver hoje, e que exige uma mobilização ímpar de energias intelectuais.
Veremos adiante, no capítulo dedicado a políticas de relação da ética e da ciência da Unesco, como este tema é complexo. Por agora, basta adiantarmos as seguintes considerações. Tal como o ser humano, e exatamente como fruto do ser humano, a ciência nada tem de neutra. O mito da ciência neutra é muito conveniente àqueles que a manipulam, e que, com ela, manipulam a outros. Esta questão, que parecia nem ao menos ter lugar no cérebro de grandes pensadores e cientistas até há pouco tempo atrás, parece definitivamente diluída, do ponto de vista teórico, ao fim da famosa querela do positivismo, onde se evidencia com clareza, hoje incontestável, que não há ciência nem cientista sem interesses muito além dos meros interesses “científicos” – interesses que, se não são claros, podem ser dissecados a ponto de exporem o seu núcleo de claridade.
Ora, talvez este seja o pequeno elo que possa unir ética, vida humana, vida na terra, com ciência: potência intelectual humana que se desprende da própria humanidade, para transformar o mundo numa espécie de correlação entre objetos conhecidos e aqueles que conhecem os objetos. A ciência, pelo menos a ciência moderna (não estamos aqui falando da mais prudente ciência contemporânea), se instrumentaliza normalmente em tecnologia de invasão, não só dos átomos e das moléculas, mas igualmente dos povos e das consciências. Esta ciência não mantém com a ética um parentesco evidente. Todavia, um elo possível de aproximação está, porém, no fato de que ambas são não-neutras, porque ambas são produtos humanos. E nada do que é humano é neutro.
Este é o ponto de partida. Se quisermos pensar uma articulação entre ciência e ética, teremos que estabelecer uma hierarquia clara. Qual a hierarquia que temos convivido desde a modernidade? Exatamente a hierarquia entre a ciência e a ética, onde primeiro se pensa os interesses científicos, e depois se tenta resolver, se é que se tenta, os problemas éticos daí decorrentes. Porém, situações complexas e dolorosas que a contemporaneidade tem vivido instigam a inversão desta hierarquia que pareceu, a muitos modernos, “natural”.
Trata-se, assim, de uma reconsideração axiológica radical. A ciência, fruto do intelecto humano, não é fruto da vida humana como tal, mas de uma de suas parcelas, de uma de suas dimensões, embora uma das suas dimensões mais poderosas: a sua racionalidade. O ímpeto grego pelo conhecer, que permitiu que chegássemos tão longe em dimensões científicas, deve ser refreado pela reconsideração contemporânea do sentido do conhecer, e o sentido do conhecer, o sentido não-neutro, e que não pode nunca ser reduzido a uma dimensão de uma equação de igualdade, repousa não na lógica do desenvolvimento da própria ciência e em suas implicações tecnológicas ou tecnocráticas, mas exatamente, como no caso da ecologia, da política, e das mais diversas instituições, na ética que deveria sempre fundamentar o conhecimento científico.         Tão simples assim aparece a questão, e tão dificilmente exeqüível, a julgarmos pelos fatos que podemos acompanhar no dia-a-dia. Talvez estejamos aqui ainda mais longe, do que em outros casos, de uma situação próxima da ideal. Porém, não podemos abdicar desta consciência. Ciência sem consciência é uma contradição suicida, mas, infelizmente, é uma contradição concreta, a mais encontrável de todas as situações, quando examinamos os dilemas humano-ecológicos do planeta; em muitos níveis, podemos experimentá-la nas mais diversas dimensões da vida contemporânea. “Ciência com consciência”, por outro lado, significa ciência com ética como base. A consciência da ciência é a ética, ou seja, a reflexão sobre seu “antes”, “durante” e “depois”, seu sentido humano e histórico e, direta ou indiretamente, seu sentido vital. A ética é, desta forma, a possibilidade fundante e meta-científica da racionalidade científica, aquilo sem o qual a racionalidade científica, fechada em si mesma, acaba por implodir em sua totalização de poder e sentido, destruindo a tudo em seu autodestruir-se.






Capítulo 6 – ÉTICA E SUBJETIVIDADE



Poucas categorias há que, como o termo “sujeito”, sofreram um tal embate do ponto de vista científico e filosófico, nas convulsões que agitam os tempos contemporâneos. Não é por acaso que apenas agora, exatamente neste ponto de nossas reflexões, estamos tratando destes temas: sujeito e subjetividade. O que pode isto ainda significar? Tem sentido falar em subjetividade, após todas as críticas que a idéia de sujeito vem sofrendo, as transformações que vêm se avolumando nas próprias bases da possibilidade de pensar um sujeito na esteira das diversas tradições? Para nós, a questão está exatamente aí. O que, neste livro, até agora temos sugerido, embora de forma não explicita, é que é possível pré-conceber a própria idéia de sujeito desde dimensões éticas de realidade. Não estamos, evidentemente, falando aqui de um sujeito pensante, de algum tipo de solipsismo saudosista, ou de uma espécie de subjetividade lógica. Estamos pensando em algo que subjaz às ações; ou melhor, que as origina, qua as causa. “Sujeito”, para nós, tem exatamente este sentido. Não estamos, portanto, às voltas com as famosas críticas estruturalistas, que, ao pretenderem, muitas vezes, criticar o pólo subjetivo da realidade, nada mais fazem do que pulverizá-lo em fragmentos ilocalizáveis que, não obstante, permanecem, atuam, ainda que de forma não explícita no momento onde se quer situar a sede das ações.
Mas nada nos impede de abordar a questão desde este viés: até a morte do sujeito tem um sujeito que a pensa. Este sujeito que a pensa não é um sujeito que é destilado pelo pensamento de si mesmo, mas como que subjaz a si mesmo enquanto pensante. Este “subjazer a si mesmo” chamamos exatamente: ética. É outra forma de explicitar o que já havíamos sugerido. A condição humana está aqui refeita do susto da finitude; aprendeu porém a lição, não confia mais, ou pelo menos não confia mais apenas, nas suas capacidades extraordinárias de intelecção do mundo, de leitura de realidade e de prospecção de esquemas explicativos da realidade: precisa confiar no inesperado. Encontra-se o nosso objetivo, desde o ponto de vista da ética, no encontro do esperado com o inesperado. Existe aqui uma base existencial de explicitação muito difícil, mas que se faz presente de uma forma semelhante àquela que propusemos ao início dessas reflexões, quando pensamos as relações entre a ética e a condição humana. Para que pensemos o sujeito, para que pensemos sentidos possíveis dos termos “sujeito” e “subjetividade”, é necessário que algo sustente este pensamento, e esse algo que sustenta este pensamento constitui exatamente a própria possibilidade contemporânea de concepção da subjetividade. A questão é, portanto, a seguinte: parece que uma das poucas possibilidades que ainda temos de pensar a subjetividade em uma estrutura que não seja nem apologética e nem ingênua a ponto de esquecer os embates críticos com as quais esta categoria teve de se ver ao longo da história e da cultura do século XX, é exatamente tentar perceber em que sentido o núcleo da própria subjetividade se dá de forma relacional. Em outros termos, queremos aqui denunciar o absurdo de uma palavra como “intersubjetividade”. Inter-subjetividade pressuporia sujeitos que sós em seus mundos, mônadas isoladas, que acabariam, por uma espécie de vontade consensual, por estabelecer relações, sentidos recíprocos de referencialidade. Porém parece-nos que repousa aí, e esta é a tese, uma espécie de falácia original. Como conceber o sujeito fora da teia da subjetividade? Como conceber a própria existência fora da teia das existências que se referem e que lembram a cada elemento logicamente isolado as suas mútuas referencialidades, em nome das quais se pensa, se diz, se constrói discursos explicativos e se avança no conhecimento da própria realidade? Por isso, “intersubjetividade”, esta espécie de tentativa retórica, este salto de uma dimensão que nunca deveria ter escapado da vista do bom senso, toma para nós ares de absurdo. Ou a subjetividade é, ou ela não é, e em sendo a subjetividade, não pode ser senão intersubjetiva.
         Em outros termos, o sujeito não se constitui a partir do momento em que se dá conta do estreito fulcro de realidade que ocupa, em que pensa, que o manieta. O sujeito existe a partir do momento em que, estabelecendo relações, percebe que tem de sustentar estas relações, e aí é que está a dimensão propriamente dita da sua subjetividade: ou a subjetividade é intersubjetiva ou não é. No caso de não ser, o que temos são “máquinas desejantes”, são engrenagens anômicas, são figuras-fantasmas, quimeras, reflexos fugidios, delírios: tudo, menos sujeitos. “Sujeito” significa: sustentar o próprio tecido da subjetividade; subjetividade significa: compreender, pelo agir subjetivo, pela âncora subjetiva da própria existência, que não se existe senão em relação humana, ou seja, ética.




Capítulo 7 – ÉTICA E ESTÉTICA



Será necessário que destaquemos a que ponto ética e estética estão imbricadas? Em verdade, não é por acaso que hoje, em termos de discussão filosófica aprofundada, um dos principais temas estéticos é a sua relação com a ética, e vice-versa. Trata-se de uma espécie de consciência tardia de uma proveniência comum.
Estética significa tratar o mundo de forma diferente do que como mero objeto de conhecimento; estética significa a possibilidade de supor a possibilidade concreta de uma estrutura relacional especial com o que não sou eu – se assim não fosse, não necessitaríamos de obras de arte reais, mas apenas de sua idéia em nosso cérebro. Estética é, assim, uma espécie sui generis de relação com o outro, que aqui é a obra e, por extensão, a realidade estética concreta dos existentes, para além de nossa capacidade fabuladora e representativa.
Se assim é, entre ética e estética existe mais semelhanças do que pode parecer à primeira vista, pelo menos para estetas que cultivam formas exclusivamente idealizantes, ou simbólicas, de uma arquitetônica à qual dão o nome de estética, pensando estar com isso sendo fiéis a uma tradição muito venerável. Parece-nos que esta tradição exige sua própria desconstrução para que a estética e, por derivação, a arte, possa existir; o melhor da tradição estética está na sobrevivência da sua própria realidade, ou seja, da realidade do sentido estético da realidade. Estética não é objeto de conhecimento, e aqui, embora não identifiquemos de forma alguma estética com filosofia da arte, podemos dizer que obra de arte não é em nenhuma hipótese, enquanto obra de arte, objeto de conhecimento, apenas objeto de relação, apenas e tudo isso: objeto de relação. Poder-se-ia objetar que “relação” é uma forma de conhecimento, porém esperamos ter mostrado, pelo estilo de nossa argumentação até agora, a que ponto existem claras e sutis nuances que diferenciam estas duas estruturas de abordagem da realidade. Relação vai além do conhecimento; relação está antes do conhecimento; relação também pode até mesmo ser conhecimento, mas relação não se define pelo conhecimento. Ninguém considerará que sua apreciação de uma obra de arte, que a relação que estabelece com uma obra de arte, um quadro, uma composição musical, ou uma poesia, ou uma grande obra literária, se dá porque conhece, apenas considera, muito lucidamente, que, em conhecendo, estabelece uma relação. Estamos aqui exatamente propondo, mais uma vez, uma espécie de subversão hierárquica. Não é porque conhecemos uma obra de arte que sabemos apreciá-la como uma obra de arte, mas é porque a obra de arte está para além dos limites esquematizantes do mero conhecimento e obriga a uma estrutura relacional de comunicação, de diálogo, que a obra de arte é obra de arte, e que com ela nós podemos nos relacionar. No entanto, paradoxalmente, parece-nos que a relação com a obra de arte, antes de ser uma relação estética, é mesmo uma relação ética. Como chegar a uma obra de arte sem respeitá-la? Como chegar a uma obra de arte sem uma concepção prévia de que ainda não a apreendemos, ou melhor, sem considerarmos a inutilidade de uma idéia tal como a “apreensão” da obra de arte? A obra de arte verdadeira, tal como o ser humano, é refratária a apreensões, ainda que hajam ardilosas apreensões intelectuais que, no encalço de sua pretensa “essência”, dispam-na de sua espessura de realidade e pretendem haver se apoderado de seu sentido. Isto é falacioso, pois o sentido não está no conhecimento, e sim, exatamente, na relação. A quase comutabilidade das duas estruturas relacionais – vital e estética – se anuncia aqui. Este tema está, de alguma forma, presente em muitas reflexões, não apenas estéticas, mas principalmente nelas, desde a consagração deste termo a partir do século XVIII.
Não é por acaso, por outro lado, que a estética, enquanto disciplina filosófica, se tornou uma espécie de prima pobre da ontologia, da gnosiologia, etc. É porque ela questiona, pela sua própria proposição original de uma outra estrutura de realidade, ou de concepção de realidade, onde a relação é privilegiada em detrimento da objetificação, que ela é muitas vezes intolerável a modelos de pensamento que tem na objetificação o seu sentido de substância mais profundo. Não existe assim, nesse sentido, estética sem ética. Porque a ética, nesse sentido exatamente, é o fundamento da possibilidade da percepção estética da realidade.
Poderíamos ainda pensar que não existe ética sem estética, pois, de alguma forma, toda relação estabelece uma espécie de contato, que poderia eventualmente ser até mesmo chamado de “artístico”, com a realidade, uma espécie de recrudescimento de dimensões sensíveis que normalmente estão soterradas pela instrumentalidade e racionalidades acostumadas a tratar objetos, sentidos de objetos externos, como escravos. Neste momento, porém, não queremos ir tão longe. Por hora, basta-nos a seguinte constatação: ética e estética, estética e ética: comutações possíveis que abrem novas chaves de compreensão do real, para além de sua objetificação. Eis aqui uma das grandes questões que hoje se pensa em termos de filosofia e cultura contemporânea, questão que surge pela crescente importância que vimos aprendendo a atribuir à relação respeitosa com a realidade.





Capítulo 8 – ÉTICA E VIDA



Um dos campos mais estudados e mais importantes das éticas aplicadas atuais, é exatamente a bioética. Não trataremos aqui da bioética enquanto uma disciplina filosófica, mas trataremos antes e, de uma forma algo propedêutica, da ética da bíos, ou seja, da ética da vida enquanto fundamento, inclusive, para poder ser pensada a bioética. Pois, se aquilo que temos desenvolvido até agora faz algum sentido, como este sentido poderia se situar fora das questões vitais? É evidente que já fizemos referência implícita a este aspecto nos capítulos que antecedem a este; todavia, aqui se trata de ressaltar devidamente esta dimensão por si mesma. Não existe ética morta, ética de coisas despossuídas de seu ser ou de esquemas tão formalizados que são absolutamente vazios. A ética é uma relação da vida com a vida, é uma reconstituição radical – referida às raízes – das possibilidades de revitalizar a vida. E, assim, de uma forma apenas aparentemente reducionista, poderíamos sugerir que não existe ética que não seja, a rigor, uma bio-ética. Não existe ética sem bio-ética, nem bio-ética sem uma base de compreensão ética da realidade como tal.
Por outro lado, destaquemos que não existe elemento de realidade que não responda à relação, como bem sabem, por exemplo, os artistas; é uma espécie de vida da própria realidade, é uma vibração que se estabelece a partir da estrutura relacional. Naturalmente não estamos aqui sugerindo uma espécie de panbiologia, pan-biologismo inconseqüente ou indiferenciado, que acabasse por equiparar a dignidade de todos os seres umas às outras. O que estamos, sim, a sugerir, é que, no próprio núcleo do pensar ético, existe já um elemento de bíos, e esse elemento é revitalizado, potencializado, no momento em que as questões, por exemplo, da bioética, são ressaltadas e tratadas com a dignidade que merecem e exigem.
Não existe, nem pode existir ética fora da vida. Vida é sentido de vida, de agir; ética é agir com sentido de vida. Há uma inter-relação entre todas essas dimensões. Há uma espécie de canal comunicante que une todas essas dimensões, aparentemente excessivamente díspares, em uma teia de sentido. Por isso, não nos parece necessário insistir, neste momento, na pertinência evidente do trato das questões da ética no que se relaciona especificamente à sua aplicação à vida. Parece-nos esta constatação de tal forma evidente, que a simples idéia de negá-la em algum tipo de formalismo, se torna mais uma vez uma espécie de quimera, ou uma obliteração do próprio pensamento, da vitalidade da racionalidade, pela transformação da racionalidade em Razão violenta e totalizante, ou seja, com a vocação da morte. Que isto se verifique amiúde nos mais variados campos da cultura contemporânea, e em estratégias geopolítica de nações poderosas, nada mais faz do que justificar os esforços que são necessários para que a unidade entre ética e vida se torne e permaneça tão clara quanto possível.




Capítulo 9 – ÉTICA E FILOSOFIA



Não parece ser muito difícil perceber, neste ponto de nosso itinerário, em que medida ética e filosofia estão imbricadas. Como filosofar sem viver? Como viver sem a base ética do viver? Existe vida isolada da vida? É evidente, pelo que aqui colocamos, que tal idéia pertence a uma época de pensamento que compartilhava de crenças com outras estruturas lógicas que reduziam o universo a uma espécie de conjunto de mônadas, de poeiras cósmicas que, flutuando ao acaso, acabavam por ser organizadas e hierarquizadas pela todo-poderosa razão ordenadora. É passado o tempo, no dizer de Adorno e Horkheimer, de considerar a filosofia como a arma principal de uma razão que gostaria de transformar o universo num “gigantesco campo de caça”.
Filosofia tem hoje o toque da humildade; sem isso, está desnaturada, está deslocada de seu próprio sentido e seu eixo entra em um processo de rotação autodestrutivo. Filosofia não é uma dimensão estática da realidade. Filosofia, no sentido que aqui estamos privilegiando, é a consideração profunda, como realidade eminente, dos liames vitais, dos liames relacionais, que unem, aproximam e afastam, seres, partículas, existências, sentidos, uns dos outros. É neste sentido que podemos aqui falar em “ética como filosofia primeira”. Pois dela depende a própria idéia da filosofia pensar a si mesma. Ética como filosofia primeira não é uma apologética, ou uma prescrição formal de um pensamento que quer chocar pelo inusitado. Ética como filosofia primeira significa, simplesmente, a reordenação de elementos de importância evidente que, por uma espécie de errância da razão imatura, acabaram se afastando de suas próprias referências mais originais e, simultaneamente, de seus destinos mais próximos. Ética como filosofia primeira significa nada menos do que pensar tendo consciência (e trazendo esta consciência inequivocamente ao discurso) de que, por circunstâncias que não podemos definir a priori, mas que nos constituem enquanto, exatamente, seres conscientes da condição humana, não podemos filosofar sem estarmos em processo de construção de uma estrutura relacional com tudo, absolutamente tudo, o que nos cerca. Ética como filosofia primeira significa pensar a realidade desde o ponto de vista do sentido que a realidade tem para nós, e do sentido que nós temos para a realidade. Portanto, filosofar para além de todo e qualquer pensamento de neutralidade, de toda e qualquer fórmula equalizadora e de toda e qualquer tautologia que, por sedutora que seja, não passa na verdade de uma totalização violenta das potências intelectuais do ser humano. Ética como filosofia primeira significa que a filosofia pode ser propriamente filosofia, porque sabe onde assenta o fundamento, as origens de seu interesse; não os desloca para categorias vagas e indefiníveis ou para elementos imponderáveis, não os dilui no inusitado, não se detém nas dimensões de incompreensão do que não seria nada mais do que algo incompreendido. Compreende a incompreensão porque se relaciona com a alteridade. Compreende que não compreende tudo, e essa é sua compreensão primeira e última.
Ao fim da filosofia, ao fim do nosso discurso, a realidade, contrapondo-se, com sua lógica, à nossa lógica, pode dizer não; mas não caímos, aqui, em algum tipo de dualidade lógica. Estamos, sim, numa espécie de criação quase interpessoal entre nós e o que não é nós. Este é, portanto, o sentido e a razão do título deste livro. Ética como fundamento significa: filosofia que sabe onde assenta seu fundamento. E filosofia não diz respeito a um conjunto abstrato de conceitos, ou a algo, como se diz popularmente, com o qual e sem o qual, tudo permanece tal e qual. Filosofia significa a conseqüência máxima do questionamento da obviedade, da crítica da realidade[5]. Filosofia é a positivação da crise que surge quando percebemos que não estamos sozinhos no mundo. Filosofia é o que surge quando conseguimos ordenar as nossas energias, em função do fato de que ousamos quebrar os infinitos reflexos da sala infinitamente iluminada da especulação, no qual é tão confortável permanecer, mas que, pela própria visão de infinito, assume a dimensão imensamente falaciosa da maior de todas as quimeras. Filosofia significa, igualmente, a subversão da violência. Criticar não significa penetrar à força nas realidades, dissecar estruturas, descarnar substâncias. Filosofar significa auscultar a vibração de sentido daquilo que não somos apenas nós. Filosofar significa: hipotecar confiança no fato de que existe algo de sólido para além de nossos sonhos, e que é exatamente esta solidez que alimenta nossos sonhos.
Por isso, ética e filosofia, filosofia e ética são, de certa forma, em um sentido preciso, que aqui não cumpre explicitar com mais profundidade, praticamente intercambiáveis em seu fundamento. Não compreendemos filosofia senão desde o ponto de vista deste fundamento. Não compreendemos ética senão no exercício propriamente dito da filosofia. Um saber que se inclina ao saber aqui e agora, e que sabe que este saber assenta sobre algo que não é ele. Só sei algo que antes não sabia, só sei algo que está para além de meu pré-saber, só sei algo quando me relaciono concretamente com o que sei. Portanto, temos já aqui uma derivação sofisticada e, em princípio, de difícil compreensão, da própria idéia de filosofia. Filosofia como relação, ou seja, filosofia como ética, não é uma possibilidade a mais de pensar a filosofia, mas é a filosofia que pensa a si mesma com os pés no chão da sua própria origem, vertida à sua origem, sem esquecer da construção do sentido de seu futuro.



Capítulo 10 – ÉTICA E JUSTIÇA



Chegamos ao fim de nossa breve jornada teórica pelas raízes da ética tal como a compreendemos. Porém, a ética, por sua própria natureza de encontro com o que “está além” dos limites do meramente razoável e bem-comportado, ou, o que dá na mesma, do meramente bem-ordenado, exige o que está para além da sofisticação da filosofia, refazendo seus passos e sustentando o encontro com o real, por mais inusitado que este se apresente. E mesmo pelo caminho interior da própria filosofia é tal fato claramente perceptível, como procuramos indicar no capítulo anterior. Este fecho é, portanto, uma espécie de convite para, no crivo agudo da existência vivida, pensarmos o que não cabe no pensamento.
Estamos acostumados a conceber o pensamento filosófico desde a famosa promulgação aristotélica da admiração, do “Thaumazein”. Agora gostaríamos, porém, de ajuntar, ao “Thauma”, o “Trauma”. Gostaríamos de pensar, neste momento, o próprio fundamento do pensar, desde um ponto de vista que não é suficientemente considerado, quando se pensa no conjunto da filosofia e, por derivação, das ciências que dela provêm. Gostaríamos de pensar o momento onde nossa respiração é suspensa pela suspensão da própria vida que ocorre, por exemplo, na percepção de uma situação de injustiça cometida, algo que nos traumatiza, algo que nos revolve internamente, algo que desordena as nossas lógicas e faz com que a própria idéia de justificar o acontecido apareça como indecente[6]. Talvez seja este um dos inícios do pensamento, talvez seja isto que tenha dado origem ao próprio pensamento: o insuportável que, ao trazer à nossa consciência a consciência da precariedade da existência, nos interdita a paz. Pois é possível pensar também a filosofia como indignação. Indignação frente ao fato de que a realidade é tratada indignamente. Indignação frente à percepção do fato de que temos sido indignos das expectativas que, de alguma forma, se abrem a nós pela promessa de futuro que a nossa vida propõe. Indignação frente às habilidades do nosso intelecto em tecer teias justificativas para o injustificável. Indignação que se coloca como origem da necessidade de superar, em todo o sentido possível, o elemento de indignação, ou seja, de indignidade, que aqui é correlato ao tema da não-vida, e, portanto, ao tema da não-ética. Ora, um ponto de partida para pensar essa estrutura é, desde o ponto de vista do trauma da injustiça cometida, a questão da justiça como fundamento da estrutura das relações humanas.
O tema da justiça não é um tema da filosofia política. O tema da justiça é uma ansiedade literal de todo e qualquer pensar. Apenas, e aí está a grande questão, é possível utilizar o próprio pensar para camuflar este tema em meio a outros temas. Queremos aqui, porém, seguir na direção inversa; queremos ressaltar a que ponto este tema é central e, simultaneamente, culminante nas reflexões filosóficas e científicas, por decorrência, por definição e por origem que não são, como esperamos haver mostrado ao longo dos capítulos anteriores, senão éticas.
Mas, a rigor, qual o sentido do mundo sem a nossa fidelidade na busca da justiça? Parece-nos não haver na história do pensamento humano nenhuma grande obra que tenha ignorado este fato, esteja ele presente de forma explícita, ou esteja ele implicitamente presente nos conteúdos que se desenvolvem. O ser humano, a condição humana, é, antes de tudo, nesse sentido, ansiedade por justiça. Ansiedade por ser justamente tratado. Ansiedade que, em termos relacionais, significa ansiedade por tratar justamente o que não é si mesmo, para que si mesmo tenha sentido. Justiça, portanto, não é – repetimos e acentuamos – uma categoria da filosofia, ou da ciência jurídica, ou das ciências sociais, como qualquer outra categoria, mas é o essencial da própria possibilidade da filosofia, das ciências jurídicas, das ciências sociais e humanas, e da Ciência em geral.
Justiça significa assim, aqui, a base possível do próprio pensamento e, simultaneamente, o seu telos, sua idéia reguladora máxima e definitiva. Justiça significa a exuberância da vida que se encontra consigo mesma. Porém, justiça não pode ser, a rigor afirmada como realização plena no presente do indicativo. Justiça é uma ansiedade, é uma dimensão de construção que se constrói com tijolos infinitamente pequenos, porém infinitamente recorrentes, incansáveis, sólidos e delicados. Justiça é o objeto da ciência e da filosofia, porque é o conteúdo da própria humanidade, sem o qual a humanidade torna-se vazia. Como conceber a condição humana sem a ansiedade por justiça? Há quem consiga pensar fora da ansiedade por justiça? Parece-nos que, levada a argumentação neste sentido, não há pensamento e construção humana que não seja expressão, mais ou menos bem sucedida, da reparação desta ansiedade por justiça.
Mas, se assim é, como pode o tema da justiça muitas vezes estar deslocado a esferas quase indivisáveis da própria especulação filosófica e científica? Não temos tempo agora para tratar da genealogia deste espantoso desvio[7]. Interessa-nos muito mais ressaltar o fato de que a justiça pretende se constituir, enquanto negação explícita e inequívoca da injustiça, em uma espécie de retórica ética máxima, uma eloqüência da vida. A vida eloqüente é a vida que exige justiça. Neste sentido, temos aqui uma espécie de terminação provisória das reflexões que até agora desenvolvemos. Partimos de uma abstrata idéia de condição humana, procuramos aprofundá-la paulatinamente, passamos por diversas estruturas, camadas, sentidos de realidade que configuram o dia-a-dia da própria humanidade e das próprias reconsiderações a que o ser humano está sujeito na nossa época contemporânea, e culminamos esse pensamento retomando algo infinitamente original e originante, e infinitamente distante, a ansiedade absoluta pela justiça realizada, fundamento de toda ação humana. E assim podemos, se admitirmos tal lógica de desenvolvimento, supor que a ética é exatamente, e nada mais nem menos, do que isso: vontade de justiça em realização, justiça em todos os sentidos, justiça para com o que não é nós, justiça para com o outro.


[1] Cf. nosso Totalidade & Desagregação – sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996, especialmente p. 15-29.
[2] Cf. nosso Sobre a construção do sentido – o pensar e o agir entre a vida e a filosofia, São Paulo, Perspectiva, 2003.
[3] Esta é a grande dificuldade, por exemplo, de aplicação de teorias da filosofia política importadas ao contexto brasileiro, ignorando as especificidades inconfundíveis de nossa sociedade e seus conflitos de origem. Cf. nosso O Brasil filosófico, São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 15-34.
[4] Cf. nosso Totalidade & Desagregação – sobre as fronteiras do pensamento e suas alternativas, op. cit., p. 15-29.
[5] Cf. nosso Sobre a construção do sentido – o pensar e o agir entre a vida e a filosofia.
[6] Cf. nosso ensaio “O delírio da solidão: o assassinato e o fracasso original”, in: SOUZA, R. T. Sentido e Alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de E. Levinas, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2000, p. 23-43.
[7] Tratamos deste tema em nosso ensaio “Da neutralização da diferença à dignidade da Alteridade: estações de uma história multicentenária”, in: SOUZA, R. T. Sentido e Alteridade – Dez ensaios sobre o pensamento de E. Levinas, Porto Alegre, EDIPUCRS, 2000, p. 189-208.

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