ÉTICA COMO
FUNDAMENTO
Uma introdução à Ética
contemporânea
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Ricardo Timm de Souza
2004
Revisão: Marcos Melamed Barqui
PREFÁCIO
Ocorre atualmente, nos mais variados âmbitos de pesquisa científica, seja
no nível do estudo e da produção do conhecimento, seja no nível da administração
institucional destes processos de criação, em termos de reflexos de exigências
sociais, uma crescente demanda pelo nível
ético de ponderação, ou seja, pela legitimação ética das ações desenvolvidas
e da administração dos resultados obtidos. O crescimento da exigência de legitimação ética da atividade
intelectual, em todos os níveis, é muito evidente, em termos de estudos e
pesquisas de ponta, em todas as áreas. Tal se exemplifica de forma eloqüente,
por exemplo, na criação e qualificação de comitês de ética diversos, nas mais
diferentes frentes de pesquisa e aplicação de conhecimentos, bem como pelo
interesse demonstrado, em muitas instâncias acadêmicas e sociais, pelo estudo da
ética geral e da ética aplicada a formas de conhecimento e atuação específicas.
Em
nossa longa experiência no trato do tema, na docência universitária e no
acompanhamento de pesquisas em variadas áreas do conhecimento, tornou-se
evidente a necessidade de uma obra sobre ética que fosse simultaneamente
acessível, dirigida especialmente a questões éticas contemporâneas de base, e
com sólida fundamentação filosófica. O presente livro é, em termos de resposta
este desafio, o resultado de nossa abordagem dessa complexa constelação de
exigências, à primeira vista incompatíveis entre si. A demanda de várias
gerações de estudantes, em diversos níveis de formação, e de colegas, pela
confecção de um trabalho deste tipo – demanda expressa em sua interlocução
interdisciplinar conseqüente e profunda -, acabou se transformando em
encorajamento para a redação do presente livro.
É
evidente, portanto, que, se a presente obra tem algum mérito, esse mérito é
essencialmente coletivo; o que fazemos, aqui, é assumir a responsabilidade pela
redação de um trabalho que pretende oferecer aos interessados alguns subsídios
para o aprofundamento da reflexão desta questão fundamental para todos os níveis
da vida contemporânea: a fundamentação da ética enquanto tema decisivo, em meio
à complexidade do mundo atual, nos mais diferentes campos do saber e da vida
quotidiana dos indivíduos e das sociedades.
Porto
Alegre, dezembro de 2003.
INTRODUÇÃO
Em
todos os ambientes acadêmicos, administrativos e organizacionais, e em
ressonância com uma profunda inquietação social, a palavra “ética” tem se
tornado, especialmente desde meados da última década do século XX, mais e mais
presente. Como se correspondesse à emergência inesperada, na superfície da
terra, de veios e rachaduras por onde flui a fumaça oriunda das profundidades, e
que anuncia uma erupção de um vulcão distante ou aparentemente extinto -, a
palavra “ética” se insinua em discussões as mais diversas, irrompe no corpo dos
discursos, faz-se presente, de forma muitas vezes incômoda, em documentos e
libelos os mais variados, que pretendem desenvolver linhas de desenvolvimento de
instituições, programas, eventos da mais variada ordem – especialmente em termos
educacionais, jurídicos, científicos e tecnológicos. Tornou-se não só adequado e
pertinente – para não lançarmos mão do lugar-comum “politicamente correto” –
introduzir o termo “ética” nos mais variados meios e contextos, uma espécie de
chancela legitimante da qualidade e das pretensões dos discursos.
Isso, porém, não significa absolutamente que haja um domínio social
mínimo dos níveis semânticos desta que é, na sua origem e essência, uma
categoria filosófica de grande complexidade e longa evolução. Pois o fato é que
se fala de “ética”, geralmente, com uma espécie de confiança subliminar em uma
pretensa potência auto-explicativa dessa categoria. E esta confiança não advém,
na quase generalidade das vezes, de uma consciência dos sentidos diversos desse
termo, ou de sua gravidade; ela aparece como uma espécie de resposta a uma
difusa consciência de uma exigência social ampla, de muito difícil compreensão,
mas que se articula com a especificidade dos tempos que vivemos – tempos de fronteiras em todos os sentidos[1].
Esta não-consciência suficiente das implicações e sentidos – não apenas
filosóficos – da categoria “ética” traz consigo perigos consideráveis; perigos
de generalização inconseqüente, ou, mais grave, de banalização ou manipulação
conceitual. É necessário, portanto, que se repensem continuamente as dimensões
realmente significativas do termo “ética”. O presente trabalho insere-se nessa
linha de argumentação: é necessário reconsiderar continuamente os significados
do termo “ética”, para que se possa encontrar a cada momento o equilíbrio máximo
entre o rigor teórico e a disponibilidade responsável do conceito. E este é o
objetivo maior deste texto: manter a argumentação no ponto possível de
equilíbrio entre a fundamentação teórica mais rigorosa possível – ainda que não
explícita no discurso – e a acessibilidade responsável que viabilize a
utilização intersubjetiva do termo “ética” de forma filosoficamente sólida e
defensável por não-especialistas.
O
presente livro, que condensa uma longa experiência no trato filosófico das
questões éticas tanto com estudantes de filosofia como com estudantes de várias
outras áreas do conhecimento, da medicina e da psicologia à ecologia e ao
direito, bem como na interlocução com colegas de muitos campos científicos e com
participantes, os mais diversos, de seminários extra-acadêmicos preocupados com
o tema, pretende assim se constituir em uma introdução, simultaneamente acessível e
filosoficamente bem embasada, à reflexão sobre as grandes questões éticas
contemporâneas.
Algumas características perpassam então este trabalho, devido à
especificidade a que se propõe.
Em
primeiro lugar, trata-se de uma obra introdutória. Temos como objetivo
explícito, aqui, uma introdução às questões éticas relevantes, e não sua
explanação erudita ou seu esgotamento filosófico e sistemático. Pretende-se que
o presente trabalho se constitua, muito mais, em um convite ao aprofundamento das questões,
do que em algum tipo de summa que
resumisse ou viesse a dar forma acabada à questão ética (questão, aliás,
obviamente inviável – vivemos um tempo onde a mera pretensão de esgotamento no
trato de uma questão cultural conforma-se, ou como excessivamente ingênua, ou
como definitivamente hipócrita). Como todo e qualquer livro de filosofia, o
presente trabalho opta por determinados pontos de partida, determinados modelos
de desenvolvimento argumentativo, e chega a determinadas conclusões, que muito
têm a ver, não só com as convicções filosóficas de seu autor como, igualmente,
com seu modo específico de achegar-se às questões trabalhadas.
Em
segundo lugar, não se trata de um trabalho histórico: não queremos resumir, em
poucas páginas, a vastidão de estudos históricos sobre o tema, nas mais diversas
culturas e em sua extrema riqueza de sugestões. Não temos aqui uma história da ética; temos, antes, em
certo sentido, uma breve ética da
história contemporânea, em suas diversas manifestações.
Em
terceiro lugar, trata-se de uma obra seletiva; as limitações de espaço
conduzem, necessariamente, a limitações estratégicas no trato da questão. Essas
limitações, porém, obedecem a uma lógica muito clara, que advém da nossa visão
geral da questão enquanto tal, em suas dimensões particulares. Assim, certos
temas importantes estarão ausentes, mas sua ausência deve se transformar
igualmente em um convite à sua investigação, consoante os interesses dos
leitores.
Em
quarto lugar, temos aqui um trabalho de ética contemporânea, ou de ética aplicada à contemporaneidade. Isso
significa que surgem como temas de relevância de pesquisa, especialmente,
aqueles temas que dizem respeito ao pesquisador das grandes questões éticas que
se apresentam hoje em dia, no decorrer específico do dia-a-dia das diversas
questões éticas que surgem nos igualmente diversos campos do saber. Ou seja:
tratamos de questões de base de legitimação de modelos de pesquisa, de resolução
de questões concretas, de dilemas do
aqui e agora com que se defrontam
pesquisadores e cidadãos na concretude de seu dia-a-dia. Neste sentido, o livro
pretende ser mais do que uma reflexão teórica sobre a ética.
Em
quinto lugar, trata-se de um trabalho que se pretende filosoficamente bem
embasado. Com isso queremos dizer, simplesmente, que o horizonte interpretativo
das questões e dos encaminhamentos de soluções, tem na filosofia – e não em outra ciência ou
campo do saber, como a teologia ou a jurisprudência, – sua referência de fundo e
se estatuto de legitimação radical.
Existiriam, naturalmente, muitas opções de definição filosófica deste horizonte
de referencialidade; a opção aqui tomada, naturalmente, corresponde á forma como
o autor, especificamente, entende poder fundamentar a investigação.
Por
fim, em sexto lugar, e como se depreende facilmente do acima exposto, este livro
no seu todo é antes de tudo um convite: um convite ao mergulho no trato
destas questões, que são, a rigor, as questões definitivas não só da vida humana, mas
da vida em geral, no trato dos grandes dilemas sócio-ecológicos atuais.
Capítulo 1 – O PONTO DE PARTIDA: A ÉTICA E A CONDIÇÃO HUMANA
A Ética não é um elemento a mais a
ser levado em consideração quando se pensa sobre a questão filosófica
fundamental: a condição humana. Em verdade, a Ética é o fundamento da própria possibilidade de pensar o
humano. Essa afirmação pode parecer estranha à primeira vista, mas esta
estranheza se desfaz muito rapidamente, quando os termos definidores da questão
são examinados com propriedade filosófica. Pois a própria idéia de pensar pressupõe a
Ética. Não existe pensamento fora de alguém que pensa, e esse alguém não é uma
mônada fechada em si mesma, mas, de algum modo, o fruto de relações – seja no âmbito de
sua gênese biológica (ninguém nasce senão de seus pais), seja em termos de sua
geração social e histórica (ninguém existe fora de uma cultura e de uma língua
que o acolhem, ou fora de estruturas materiais que o sustentam). Ser humano é
provir e viver na multiplicidade do humano. E não qualquer multiplicidade, mas
multiplicidade qualificada ou, exatamente, em termos filosóficos, multiplicidade ética, do agir de uns com relação aos
outros e dos sentidos deste agir.
Pois, para que a gestação tenha chegado a bom termo, é necessário que nem nossa
mãe, nem todos os que a apoiaram houvessem agido de forma má, pelo menos não a ponto de impedir
nosso desenvolvimento. O mesmo se dá, evidentemente, em cada um dos momentos de
nossa vida, não apenas daqueles por nós facilmente percebidos como decisivos ou
extremamente importantes, mas igualmente naqueles, aparentemente coloquiais,
aparentemente irrelevantes, que constituem propriamente o dia-a-dia de nossa
vida, a teia dos momentos que vivemos na cotidianidade. Em suma: em todos os
momentos de nossa vida, define-se em cada situação a continuidade de nossa
existência, não através de atos indiferentes, mas na especificidade única e
não-neutra de cada ato. Um ato qualquer, isolado, pode tanto fazer viver como
fazer morrer; embora tal coisa seja claramente perceptível nos grandes instantes
decisivos da vida, onde a vida e a morte se encontram – tanto um ato heróico de
sacrifício por outrem como um ato que mata outrem, tanto uma intervenção
cirúrgica bem sucedida como a destruição de aspectos da vida – na verdade tal
fato se dá, de um modo ou de outro, em
todo e cada um dos instantes da existência. Não há instante neutro ou
indiferente há vida; há apenas instantes que conspiram ou para a continuação e
promoção da vida, ou para sua corrosão e destruição. E isto por um motivo muito
simples: o ser humano é o ser não-neutro
por excelência. Essa não-neutralidade é simultaneamente o resultado da
reflexão original sobre a condição humana e a possibilidade de tal reflexão.
Ética é, assim, o fundamento da condição humana que vive e
medita sobre si, sobre seu lugar,
sobre sua casa, sobre seu mundo:
ética é, neste sentido, essencialmente, uma questão eco-lógica (de oikos: casa, lugar, e
logos; reflexão sobre). E, em assim sendo, ética é o fundamento de todas as
especificidades do viver, em suas mais complexas relações e derivações, das
ciências e da tecnologia, da história das comunidades e da própria
filosofia.
Capítulo 2 – ÉTICA E ECOLOGIA
Que é verdade, como vimos, que a
ética é uma fundamental questão da condição humana, ou talvez seja a questão da condição humana, e que a
condição humana é uma questão ética fundamentalmente, então tudo aquilo que
envolve a questão humana, tudo aquilo que se constitui nas circunstâncias onde o
humano se entende como tal, tem interesse eminente para a ética.
Poderíamos dizer ainda mais; poderíamos
dizer que a relação entre ética e condição humana nessas condições é
indiscernível. Em verdade, como poderíamos distinguir entre uma dimensão do agir
que é refletida a posteriori por quem
pensa a condição humana, e a própria condição humana de quem pensa o agir?
Estamos portanto em uma espécie de circulo interpretativo. O grande risco que
agora corremos é nos quedarmos encerrados neste círculo em uma estrutura de
desconsolo ou de finitude que nos impeça de transcender os limites próprios que
a própria condição humana nos impõe. Sabemos que a ética é relação, e relação
com o outro, com a alteridade; mas, será possível, no interior da estrutura de
finitude na qual vivemos, conceber a possibilidade da própria alteridade? Será
possível que nos relacionemos com seres que estão para além dos limites
estreitos das nossas representações, dos nossos pensamentos, que surgem quando
meditamos na profundidade da condição humana? Este é o tema deste capítulo.
Que não se entenda aqui ecologia como
uma ciência, ou ramo específico de uma ciência qualquer, tal como a Biologia ou
outra. É necessário que se entenda aqui ecologia, no sentido próprio do termo,
que vem de “oikos” e “logos”, termo composto que reúne estas duas palavras num
sentido muito próprio. Ecologia é entendida por nós como sendo a dimensão de
articulação, de reflexão, de compreensão e explicação do lugar, da casa, do
mundo, que habitamos, que vivemos, que é a sede de nossa condição humana, no
momento em que esta condição humana reflete sobre si mesma. Assim, Ética e
Ecologia se imbricam de forma muito precisa e muito clara. Podemos, para abordar
esta questão desde um ponto de vista ao estilo das reflexões que temos até agora
conduzido, tentar entender o tema da seguinte forma: não há questão ética, ou
seja, não há questão humana, que não seja uma questão ecológica, assim como não
há questão ecológica que não seja, por sua própria essencialidade eco-lógica, também uma questão humana.
Ética e ecologia não estão apostas como se fossem dois termos oriundos de
proveniência muito diferente, uma do ramo da filosofia, outra do ramo da
ciência, que aqui artificialmente estivéssemos juntando. Na verdade, o que nos
permite pensar desde o nosso preciso lugar no mundo, é justamente, como tentamos
deixar claro no primeiro capítulo deste livro, a nossa estrutura ética de base.
Esta estrutura ética de base não apenas nos permite pensar o lugar onde vivemos,
a casa onde habitamos, o mundo no qual nos entendemos; ela exige que tentemos
compreender e nos relacionar com este
universo que nos cerca e que de alguma forma também somos nós.
A ética é impensável fora de um lugar
de sua realização, porque, como já sublinhamos suficientemente neste trabalho,
não estamos aqui entendendo ética como uma dimensão utópica de realização
prescritiva, ou como uma ordenação explanativa de termos. Estamos aqui
entendendo ética como substância humana da própria humanidade. Ora, o que pode
ser mais importante para a humanidade do que pensar e realizar a si mesma, e
onde poderia a humanidade, o ser humano, pensar e realizar a si mesmo senão no
seu universo, aqui compreendido desde o ponto de vista de uma espécie de nicho
ético-ecológico? Portanto, é desde um nicho ecológico, desde uma fresta
ecológica que pensamos, agimos, e vivemos. É neste fulcro que construímos o
sentido de realidade que permite que nos relacionemos conosco mesmos e com tudo
e todos os que nos cercam. As grandes questões ecológicas não são meramente
cientificas, elas são fundamentalmente, questões éticas; elas e a sua solução –
ou não-solução -, é que virão a definir o futuro do próprio ser humano na terra,
sua casa maior. Portanto, como podemos facilmente entender que aquilo que define
o futuro do ser humano é justamente a sustentação ética do seu ser, então é
fácil depreender que a questão ecológica é uma questão ética na sua origem e no seu sentido; aliás, não é necessário uma
reflexão assim tão sofisticada para percebermos aquilo que os cientistas mais
lúcidos vêm percebendo nos últimos tempos: que não existe questão ecológica que
não seja uma questão humana, assim como não existe uma questão humana, uma
questão social, que não seja uma questão ecológica.
A divisão metodológica que se faz
quando se categoriza ecologia como uma ciência especial é procedimental, e não
essencial. Na verdade, “ecologia”, enquanto percepção, compreensão de seu
habitat, dos lugares do habitat do mundo em que vivemos, é na verdade a base de
toda a ciência, porque não existe ciência sem um lugar para essa ciência ser
realizada. A ecologia, nesse sentido, como aqui a compreendemos, é todo um
desdobramento ético da auto-compreensão do ser humano no lugar que habita, que
funda, de onde provém, e que convém cuidar em termos de perspectiva de futuro.
As grandes questões ecológicas com que hoje nos deparamos não são questões que
alguém pensou em algum momento inspirado ou em uma intuição científica: as
grandes questões ecológicas são desdobramentos da incompreensão original da base
ética, fundamental, que articula os seres humanos entre si e com os outros
seres. Temos assim, com bastante clareza, que ética e ecologia não podem ser
pensadas sem uma mútua referencialidade de índole muito própria e muito aguda.
Ética é o agir próprio do ser humano no exercício de sua liberdade, e que se dá
em um lugar, em um locus específico
do universo. Ecologia é a compreensão deste locus, compreensão, que como vimos,
apenas se pode dar a partir de um fundamento ético que permita pensar, que
permita a reflexão. Desta forma, podemos concluir com facilidade que ética e
ecologia estão, na verdade, muito mais próximas do que normalmente se pensa, ou
do que podemos conceber quando, em uma grande biblioteca, temos que nos dirigir
a seções muito separadas umas das outras para nos aprofundarmos teoricamente em
cada um desses assuntos.
Cabe ainda uma reflexão final neste
capítulo: colocamos ao início a indagação, indagação que acompanha a muitos
filósofos e pensadores, sobre a possibilidade ou não de relação com o que está
para além dos limites intrínsecos, ou assim pensados, de nossas representações.
Será possível a relação com o outro? Não será tudo isso nada mais que uma
quimera, ou desejo, que nunca será satisfeito, e que aqui entra no campo dos
impossíveis com um ar de sedução que faz com que servos brilhantes se percam por
sendas já anteriormente perdidas? Ora, parece-nos que justamente as grandes
questões ecológicas, na sua incisividade, na sua gravidade impostergável (que só
não são percebidas por aqueles que nisto não tem interesse), parece-nos que
estas questões por elas mesmas nos puxam para além de nós mesmos, nos atraem
para fora do círculo de auto-referência que a nossa subjetividade moderna
configurou em termos de pensamento científico e filosófico. Pois vejamos: as
questões ecológicas não são questões que podemos fingir desconhecer, elas são
questões que determinarão o presente e o futuro da humanidade. Um pequeno
exemplo é suficiente aqui: vejamos a questão da água potável. Caso não sejam
reavaliadas e re-concebidas as formas de administração, uso e cuidado da água,
teremos brevemente situações calamitosas que cercam este bem fundamental da
vida, que se confunde com a própria vida. Ora, esta não é uma questão que
possamos fingir não existir, é uma questão que nos atrai para fora de nós
mesmos, é uma concretude absoluta, é uma questão de alteridade concreta. A água,
da qual dependemos absolutamente, em todos os termos e sentidos, para viver, e
da qual dependem não só nós, mas todos os outros seres e as gerações vindouras,
é um elemento outro em relação às
nossas representações; trata-se de um elemento de uma concretude tão extrema que
nenhuma representação é capaz de substituir, e as questões que traz a sua
administração à reflexão sobre o seu sentido de preservação, a questão ecológica
na qual se constitui, é uma questão que está para além das questões que o nosso
cérebro, às voltas com suas habilidades próprias, seria capaz de destilar. Temos
portanto, aqui, a prova de que não estamos sozinhos no mundo, e para essa prova
não necessitamos de uma complexa referência (que é evidentemente passível de ser
executada), sob a qual, na verdade, se embasa toda a nossa argumentação da
existência do outro humano; é suficiente para tal, pensarmos num elemento
“químico”, para que se perceba indelevelmente, de forma definitiva, a alteridade
que está para além das nossas representações. Ora, se é verdade que a ética é
relação com o outro, então este pequeno sinal, que na verdade é um gigantesco
sinal de existência da concretude, rearticula a própria metafísica, rearticula o
próprio pensamento em torno a alguns eixos diferentes daqueles com os quais
estamos normalmente acostumados. O pensamento como que sai de si mesmo, não para
conquistar o que não é ele, não para analisar ad infinitum tudo aquilo que está no
âmbito do alcance da sua luz, mas para se relacionar com aquilo que não é ele.
Teremos oportunidade de aprofundar este tema no capítulo intitulado “Ética e
Ciência”; por agora, seja suficiente dizermos que pretender pensar o presente e
o futuro na ignorância de tais questões ecológicas, sejam ignoradas, não é
apenas a negação do próprio pensamento, mas é a negação da própria vida. Temos
aqui, então, uma nova corroboração daquilo que foi anunciado no primeiro
capítulo. O universo que podemos aqui conceber como sendo a multiplicidade dos
múltiplos existentes se constitui não em uma espécie de conjunto infinito de
elementos analisados por uma racionalidade instrumental, mas pelas relações que
estes múltiplos existentes estabelecem mutuamente em seu conjunto na construção
do sentido que somos (ou não) capazes de captar[2].
A racionalidade então, também é, de certa forma, subvertida; pelo menos, a
racionalidade tal como estamos acostumados a pensá-la na tradição de uma
filosofia que gostaria de retirar de cada coisa a sua essência. “Racionalidade”
passa aqui a ser considerada uma dimensão ética da própria realidade, e
“dimensão ética da própria realidade” significa nada mais, nada menos, do que
quebrar os espelhos que configuram o sedutor quadro das reflexões que emprestam
àquele que pensa a ilusão de infinito quando está lidando, na verdade, com
coisas finitas. A reflexão é uma arma poderosa, mas o seu contra-veneno é muito
necessário. Este contra-veneno constitui na relação que somos capazes de
estabelecer com o que não é nós
mesmos.
Capítulo 3 – ÉTICA E POLÍTICA
A
partir do que vimos do capítulo anterior, podemos depreender facilmente que
temos, aqui uma semente de algo como uma racionalidade ética, uma racionalidade
que tem sentido na sua dimensão ética propriamente dita, uma racionalidade que
não existe sem que a sua dimensão ética seja a própria medula do que de racional
ela possui. Por que? Porque “racionalidade” significa aqui se relacionar para
além dos reflexos que o pensamento é capaz de destilar para si mesmo.
Racionalidade significa relacionar-se com a realidade, e a realidade não está
presente, ou pelo menos não está presente de forma concreta e absoluta, no
interior da lógica do próprio pensamento que pensa: há sempre algo para além
daquilo que somos capazes de pensar, e, se assim não fosse, teríamos a
onisciência. Portanto, é com base nesta dimensão de racionalidade ética que
podemos retornar a dimensão da ética como fundamento das relações humanas,
aquilo que aqui, neste livro, temos considerado central para toda a nossa
argumentação.
Neste
capítulo, interessa-nos pensar introdutoriamente a relação entre ética e
política. Reservamos à segunda parte deste trabalho, no capítulo intitulado “Por
uma teoria da responsabilidade social - a ética política na práxis das relações
humanas”, o estudo de dimensões exemplares da relação entre o ético e o
político; porém, interessa-nos aqui, na linha argumentativa que temos
desenvolvido até agora, e preparando o que a seguir virá, dedicar atenção a este
tema no presente contexto.
Qual a
relação entre ética e política? Evidentemente, muito se tem falado sobre isso. O
que acontece, porém (e muitas vezes trata-se de um elemento invalidante na
aproximação destes conceitos), é que há uma tendência muito forte de separá-los
epistemologicamente. Isso tem lá suas razões técnicas, filosóficas e
sociológicas muito consideráveis. Todavia, podemos talvez, a um exame mais
profundo das questões, ousar superar os pudores científicos que normalmente
classificam tais disciplinas, ou tais âmbitos de conhecimento, em campos tão
separados. Pois vejamos: o que é a política senão a arte de viver na pólis, na cidade, no mundo? O que é a
ética, no sentido que aqui tratamos, senão exatamente a mesma coisa?
Evidentemente, estamos falando de uma forma aproximada; não nos interessa
confundir ética e política, interessa-nos mostrar como a “ética”, na verdade, é
inconcebível sem uma vida na cidade, por que a vida na cidade (e por “cidade”
entendemos a configuração de uma comunidade humana) significa exatamente a
concreção das relações humanas. Assim como “política”, em termo próprio, é
inconcebível sem relações éticas, pois “política”, viver na pólis, conceber,
criar, desenvolver e preservar a pólis, pressupõe igualmente relações humanas.
Não adianta concebermos tecnicamente a idéia de política, e então nos
preocuparmos em apor a esta idéia, ou a esta concepção, dimensões éticas
regulativas. Não adianta partirmos do “status quo” e, em nome do equilíbrio de
uma filosofia política que tente contentar interesses diversos, estabelecer
estruturas intelectuais de equilíbrio e de mediania, que acabem por fracassar em
suas intenções por ignorarem lógicas reais de poder ou por pretender que
convivam pacificamente interesses inconciliáveis, porque mutuamente excludentes
em termos de uma convivência ético-política sadia[3].
Temos é que pensar já desde o início
a possibilidade da não-separação destas duas dimensões. O fruto desta cisão de
origem entre ética e política nada mais é do que aquilo que podemos observar
diuturnamente, sem entender, normalmente, suas razões: estruturas de violência
que se reproduzem infinitamente. Ou seja: viver na cidade e não viver eticamente
significa aquilo que temos visto a cada dia nas nossas grandes cidades, bem como
na situação micro-política e macro-política do mundo. Porque se pensou que se podiam
estabelecer, cientificamente, estruturas políticas que, por alguma espécie de
geração espontânea, dessem lugar “naturalmente” a relações éticas necessárias, é
que vivemos os atuais dilemas (como exemplos contundentes, a violência e a
corrupção), tanto em nível próximo, micro-geográfico, como na macro-geopolítica
que governa o mundo e que nos tem levado a impasses de dimensões
extraordinárias. Todos estes temas serão detalhados no capítulo referente à
responsabilidade social. Mas, neste momento, é possível destacarmos o fato de
que conceber um lugar onde pessoas vivam sem que esteja presente de forma muito
clara, já na estrutura desta concepção, a dimensão relacional das pessoas que ali viverão
(e relacional quer aqui dizer eticamente sustentável), significa uma
quimera de proporções muito maiores do que aparentam ser, caso estejamos vivendo
apenas no mundo das considerações pragmáticas. É por isso que filosofias
políticas que têm como base de fundamento, ou como pano de fundo, ou horizonte
de sentido, o reequilibrio de dimensões desequilibradas do ponto de vista de
macro-políticas e de ética enquanto relações humanas concretas, diárias, entre
as pessoas que ali vivem, tendem necessariamente a fracassar. O seu cabedal
teórico acaba sendo seqüestrado pelo lado que dispõe de maior poder de sedução
intelectual, ou que é capaz, por exemplo, de justificar a injustiça em nome da
ordem. As filosofias políticas de equanimidade econômica, de redistribuição de
bens, de equilíbrio de direitos, são todas muito plásticas na sua apresentação;
pecam porém, por haverem ignorado a origem comum da própria idéia de filosofia como
o núcleo ético de sua geração e da própria idéia de política como um lugar onde
economicamente (ou ecologicamente) se relaciona. Relações desequilibradas não
podem ser corrigidas por paliativos; a sociedade deve ser refundada sobre bases
humanas, e não sobre bases procedimentais que pretendem contemplar interesses
que oscilam conforme a capacidade de a negociação ou a força de uma das
dimensões disputantes. Por isso, ética e política, como ética e ecologia, estão
intrinsecamente imbricadas. Pensar uma nova sociedade sem pensar nessa
imbricação é pensar uma quimera. Tentar corrigir dilemas éticos com soluções
políticas paliativas, ainda que filosoficamente aparentemente bem organizadas,
não passa de uma postergação daquela questão que a rigor se propõe, ou seja,
como refundar a possibilidade humana da convivência em um mundo com dilemas
sócio-políticos gigantescos, desafiadores, e que levarão, caso não sejam
solucionados, à destruição de sua própria estrutura de sobrevivência,
inviabilizando não só a vida dos contemporâneos mas também a das gerações
futuras.
Cremos
agora, a partir do que aqui já desenvolvemos, poder propor, inclusive, uma
espécie de definição de política: política é a capacidade de conceber uma
estrutura ética de convivência que permita a cada ser relacionar-se o mais
saudavelmente possível com cada outro ser. Toda e qualquer política que não
contemple exatamente estas dimensões, ou que descure da gravidade que estas
dimensões significam para a sobrevivência da vida na terra, nada mais são do que
falsidades, que estão se substituindo nas dimensões concretas da vida, e cujo
futuro pertence ao reconhecimento doloroso do seu fracasso.
Capítulo 4 – ÉTICA E INSTITUIÇÕES
Vivemos
em um mundo de extrema complexidade. Isto vem sendo destacado pelos mais
eminentes pensadores da nossa era. Qualquer um percebe a que ponto,
contemporaneamente, a complexidade nos penetra, a que ponto penetramos a
complexidade do mundo. É evidente que isso não poderia deixar de acontecer no
campo das organizações que, de algum modo, estabelecemos para viabilizar as
formas de relações do ponto de vista de instituições criadas para a preservação
da vida. E, aqui, fique bem claro: por instituições, não entendemos senão isso:
tentativa de organização social fundada à preocupação original e inarredável de
preservação da vida.
Este
capítulo trata da questão da relação entre a ética e as instituições. Qual seria
esta relação? Ora, segundo o que até aqui temos proposto, não poderia ser esta
relação outra, senão uma relação
fundacional. Ou seja, uma instituição que não tenha por base permitir a
possibilidade de relações eticamente saudáveis entre seus membros, é uma
instituição vocacionada ao fracasso, ou à formalização violenta de suas
estruturas (tantas vezes observável em instituições reais) que acabam por
denunciar à contemporaneidade, pela violência a que sujeita os indivíduos em
nome de uma vaga generalidade ou formalidade, a sua desumanidade e as suas
dimensões anti-sociais e antiecológicas. Toda a instituição que não seja capaz
de contemplar esta preocupação vital fundamental – a saber, de uma relação
eticamente saudável entre os indivíduos, numa expressão da política atrás
expressa -, e não apenas das relações dos seres humanos uns com os outros, mas
dos seres humanos com todo e qualquer ser vivo e com a natureza em geral, é uma
instituição que tende necessariamente a fracassar e a abortar a sua profissão de
existência.
Estas
reflexões nos conduzem ao redimensionamento histórico das próprias instituições
já existentes. Quais das instituições existentes são fiéis à vida? Quais as
instituições existentes promovem condições que permitem não só a sobrevivência
dos indivíduos, mas a sua vida propriamente dita enquanto conteúdo de realidade
mais próximo delas mesmas? Por outro lado, quais são as instituições atualmente
vigentes que não fazem senão mutilar, ou mesmo impedir, que a vida possa se
desenvolver em toda a sua exuberância? A resposta a esta questão, é uma resposta
decisiva, que nos conduz à reconfiguração histórica e social das instituições
hoje existentes. Ressaltemos uma vez mais: evidentemente, temos para esta
reconsideração um parâmetro muito claro de validade, e este parâmetro não pode
ser senão ético. Instituições que têm vida própria e que funcionam como grandes,
imensas, máquinas anônimas, a bem da produção de riquezas ou da reprodução de
poder, nas quais os indivíduos não passam de engrenagens substituíveis, são
instituições que nada têm a ver com a vocação humana, e, portanto, são
instituições, absolutamente antiéticas. Não têm como subsistir em um mundo
pensado nos moldes que aqui estamos propondo. Pensar, por outro lado, no seu
aperfeiçoamento, é algo que nos parece, até certo ponto, improvável. Na verdade
a instrumentalização da razão, a razão instrumental, tal como chamavam, por
exemplo, Adorno e Horkheimer, é capaz de destilar monstruosidades onde as
pessoas se sintam de certa forma pertinentes, sem que sua pertença seja
concreta. Números que flutuam, símbolos que se substituem à carne e ao sangue de
cada um de nós, estruturas estreitas, ordenações, lógicas anquilosadas, sistemas
de poder, na verdade tudo isso se constitui numa espécie de repositório de
neuroses sociais que, uma vez examinado a fundo, revelará nada mais do que uma
extrema violência de origem, uma
totalização que conspira, em todos os sentidos, contra a vida. Instituições
deste estilo não são apenas antiéticas, elas são antiecológicas e antipolíticas,
elas são anti-humanas e, portanto, não oferecem absolutamente nenhuma
possibilidade de futuro; tratam-se de abortos daquilo que se poderia pensar ter
ou dever ter uma instituição como tal. Instituições já são, por sua própria
natureza, dimensões-limites do humano, ao formalizar o informalizável a bem da
possibilidade de convivência nas sociedades, e não existem sem grandes
dificuldades e tendências a oprimir o humano, e isso, muitas vezes, apesar de
toda a boa-vontade ética de quem as pensou. O que dizer, agora, de instituições
que, em nome de princípios políticos e econômicos, se pretendem substituir à vida como tal?
Uma
implementação, uma instituição, uma formalização, muitas vezes acaba por afastar
os seres humanos uns os outros, estabelece entre os indivíduos limites
invisíveis que impedem a naturalidade das relações vitais mais fundamentais.
Todavia, temos de reconhecer que, na complexidade do mundo atual, seria muito
difícil sobrevivermos sem instituições reguladoras. O que é agora necessário,
então, é que consigamos, com o crivo ético, no sentido que temos até agora
desenvolvido, ser capazes de criticar
a fundo a lógica de constituição e perpetuação de toda e qualquer instituição,
em nome da ética.
Em
suma: instituições que transformam pessoas em engrenagens e máquinas não são
apenas antiéticas, ou anti-humanas, elas são antivitais. E, por isso,
contradizem a própria lógica da vida, não podem subsistir. A vida, com o passar
do tempo e no devido tempo, saberá, provavelmente de forma muito dolorosa,
derribar estas monstruosidades que o ser humano é capaz de conceber e erigir,
caso não sejamos lúcidos o suficiente para desconstruirmos aquilo que se
constituiu de forma desumana. A ética é, portanto, também, uma espécie de crivo do sentido vital. Tudo aquilo que
se formaliza a tal ponto que não se encontra mais com sua origem, tudo aquilo
que se transforma em uma espécie de máquina semovente que não se compreende a si
mesma, de tal forma que não é capazes de legitimar a sua própria existência em
função da vida, não passa de algum tipo de monstruosidades anti-humana ou de
figuras de um futuro museu teratológico. Substituir pessoas por números, por
dinheiro, por palavras, por símbolos, é, do ponto de vista administrativo, da
razão instrumental, muito útil; é porém, do ponto de vista da sobrevivência do
planeta, inviável.
Eis
então que assoma aqui a mesma imbricação necessária que examinamos na relação
entre a ética e política. Uma instituição não pode ser concebida, em termos
humanos, a não ser no sentido de originar-se da mesma semente da relação humana
ética, saudável, pois esta relação saudável é o corretivo que a instituição
necessitará constantemente para não degenerar em totalidade violenta. Assim como
ética e política são, na profundidade de seu sentido humano, assim ética e
instituição devem ser, no dia-a-dia concreto da vida institucional, tão próximas
quanto possível (poderíamos dizer: interdependentes). Uma instituição que não
tenha, na sua constituição mais profunda, na sua medula de sentido, a própria
dimensão relacional humana, é uma instituição vocacionada ao fracasso. Ela não
subsistirá aos momentos concretos que se sucedem no tempo e acabam expondo
aquilo que está oculto em nome de grandezas ou jogos de poder ecológica e
humanamente injustificáveis.
Capítulo 5 – ÉTICA E CIÊNCIA
É
possível que a ciência seja a mais complexa, poderosa e influente das
instituições contemporâneas. Desde seu nascimento, há muitos séculos, a ciência
nada faz, senão se sofisticar, se multiplicar e estabelecer parâmetros de
existência e validade em todas as dimensões da vida. O ser humano acabou por
fazer da ciência a sua verdade racional, tendendo, especialmente na cultura
ocidental, a fazer dela o seu ídolo ao qual tudo o mais – especialmente outras
formas de racionalidade – é sacrificado.
Por
outro lado, sabemos, pelo testemunho doloroso do século que acaba de findar, que
esta ciência tem muitas faces, muitas dimensões, e está muito longe de ser
compreendida em todo o seu potencial, tanto construtivo quanto destrutivo. Na
verdade, boa parte daquilo que temos chamado a “esquizofrenia civilizatória do
século XX”[4],
ou seja, a convivência de situações absurdas do ponto de vista da vida e de sua
sobrevivência com situações de avanço científico inusitado e extraordinário, tem
a ver com o desconhecimento destes potenciais. A que poderia se dever o
desconhecimento destes potenciais? A resposta a esta questão não é
extraordinariamente difícil; podemos avançar (e este tema será desenvolvido mais
adiante, no capítulo no qual trataremos da questão da relação entre ética e a
manipulação genética) que, na verdade, uma das dimensões mais avessas ao
controle externo é justamente a ciência, talvez, justamente, por ter esta
nascido, pelo menos em sua feição moderna, como uma espécie de superação dos
muros externos de controle de pensamento. Esta vocação de desenvolvimento, que
pode ser percebida na forma de como a ciência foi destruindo uma série de
barreiras a ela externas, do ponto de vista, por exemplo, filosófico, religioso
e ideológico, acabou por se transformar no mote de seu próprio desenvolvimento.
A ciência precisa de liberdade; ciência sem liberdade não existe. Esta retórica
é, evidentemente, muito eloqüente, e tem a sua porção de verdade. Por outro
lado, trata-se de uma retórica de uma extrema periculosidade. Há de se descobrir
isso facilmente, na medida em que se descobre, por exemplo, as falácias do
positivismo científico. A ciência, abandonada a si mesma e à sua própria lógica,
é um animal selvagem e furioso recluso em uma sala repleta de obras de arte e
cristais preciosos. Ele tentará sair da sala, e para isso quebrará muito do que
ali se encontra. Em nome de sua liberdade, sacrificará muitos bens; em nome de
sua sobrevivência, sacrificará muitas das dimensões também importantes, ou até
mesmo, tão ou mais importantes que ele mesmo, que nesta sala se encontra. E esta
é apenas uma das dimensões do problema. Mas uma dimensão que leva a
desdobramentos muitíssimo perigosos, dos quais alguns são mui facilmente
perceptíveis hoje em dia – por exemplo, a transformação da ciência em uma
espécie de braço intelectual armado das lógicas de poder
hegemônico.
Sabemos
muito bem dos grandes dilemas que surgem no cérebro de qualquer criança quando
descobre que, com uma pequena porcentagem dos gastos anuais com armas se poderia
acabar com a fome no mundo. Que lógica é essa, que subjaz a esta questão humana?
Propomos refazer a pergunta: qual a justificativa para tal fato? Evidentemente
não se trata de uma justificativa ética.
Ciência
e ética provém, diferentemente de ciência e ecologia, ciência e política, de
fontes racionais algo diferenciadas na sua origem. Ciência, saber, iluminar,
invadir a realidade, expor as essências, descobrir os núcleos da existência, ir
até ande nunca outro ser humano tenha ido, estes sonhos modernos, todos eles têm
como preocupação muito secundária o respeito por aquele que é o seu objeto, o
objeto científico. Caso assim não fosse, não poderiam dissecá-lo, não poderiam
analisá-lo. Mas a ciência não é analítica por natureza? Este é um dos dilemas
centrais com os quais temos que conviver hoje, e que exige uma mobilização ímpar
de energias intelectuais.
Veremos
adiante, no capítulo dedicado a políticas de relação da ética e da ciência da
Unesco, como este tema é complexo. Por agora, basta adiantarmos as seguintes
considerações. Tal como o ser humano, e exatamente como fruto do ser humano, a
ciência nada tem de neutra. O mito da ciência neutra é muito conveniente àqueles
que a manipulam, e que, com ela, manipulam a outros. Esta questão, que parecia
nem ao menos ter lugar no cérebro de grandes pensadores e cientistas até há
pouco tempo atrás, parece definitivamente diluída, do ponto de vista teórico, ao
fim da famosa querela do positivismo, onde se evidencia com clareza, hoje
incontestável, que não há ciência nem
cientista sem interesses muito além dos meros interesses “científicos” –
interesses que, se não são claros, podem ser dissecados a ponto de exporem o
seu núcleo de claridade.
Ora,
talvez este seja o pequeno elo que possa unir ética, vida humana, vida na terra, com
ciência: potência intelectual humana
que se desprende da própria humanidade, para transformar o mundo numa espécie de
correlação entre objetos conhecidos e aqueles que conhecem os objetos. A
ciência, pelo menos a ciência moderna (não estamos aqui falando da mais prudente
ciência contemporânea), se instrumentaliza normalmente em tecnologia de invasão, não só dos átomos
e das moléculas, mas igualmente dos povos e das consciências. Esta ciência não
mantém com a ética um parentesco evidente. Todavia, um elo possível de
aproximação está, porém, no fato de que ambas são não-neutras, porque ambas são
produtos humanos. E nada do que é humano é neutro.
Este é
o ponto de partida. Se quisermos pensar uma articulação entre ciência e ética,
teremos que estabelecer uma hierarquia clara. Qual a hierarquia que temos
convivido desde a modernidade? Exatamente a hierarquia entre a ciência e a
ética, onde primeiro se pensa os interesses científicos, e depois se tenta
resolver, se é que se tenta, os problemas éticos daí decorrentes. Porém,
situações complexas e dolorosas que a contemporaneidade tem vivido instigam a inversão desta hierarquia que pareceu, a
muitos modernos, “natural”.
Trata-se,
assim, de uma reconsideração axiológica radical. A ciência, fruto do intelecto
humano, não é fruto da vida humana como tal, mas de uma de suas parcelas, de uma
de suas dimensões, embora uma das suas dimensões mais poderosas: a sua
racionalidade. O ímpeto grego pelo conhecer, que permitiu que chegássemos tão
longe em dimensões científicas, deve ser refreado pela reconsideração
contemporânea do sentido do conhecer,
e o sentido do conhecer, o sentido não-neutro, e que não pode nunca ser reduzido
a uma dimensão de uma equação de igualdade, repousa não na lógica do
desenvolvimento da própria ciência e em suas implicações tecnológicas ou
tecnocráticas, mas exatamente, como no caso da ecologia, da política, e das mais
diversas instituições, na ética que
deveria sempre fundamentar o
conhecimento científico. Tão
simples assim aparece a questão, e tão dificilmente exeqüível, a julgarmos pelos
fatos que podemos acompanhar no dia-a-dia. Talvez estejamos aqui ainda mais
longe, do que em outros casos, de uma situação próxima da ideal. Porém, não
podemos abdicar desta consciência. Ciência sem consciência é uma contradição
suicida, mas, infelizmente, é uma contradição concreta, a mais encontrável de
todas as situações, quando examinamos os dilemas humano-ecológicos do planeta;
em muitos níveis, podemos experimentá-la nas mais diversas dimensões da vida
contemporânea. “Ciência com consciência”, por outro lado, significa ciência com
ética como base. A consciência da ciência é a ética, ou seja, a reflexão sobre
seu “antes”, “durante” e “depois”, seu sentido humano e histórico e, direta ou
indiretamente, seu sentido vital. A ética é, desta forma, a possibilidade
fundante e meta-científica da racionalidade científica, aquilo sem o qual a
racionalidade científica, fechada em si mesma, acaba por implodir em sua
totalização de poder e sentido, destruindo a tudo em seu
autodestruir-se.
Capítulo 6 – ÉTICA E SUBJETIVIDADE
Poucas
categorias há que, como o termo “sujeito”, sofreram um tal embate do ponto de
vista científico e filosófico, nas convulsões que agitam os tempos
contemporâneos. Não é por acaso que apenas agora, exatamente neste ponto de
nossas reflexões, estamos tratando destes temas: sujeito e subjetividade. O que
pode isto ainda significar? Tem sentido falar em subjetividade, após todas as
críticas que a idéia de sujeito vem sofrendo, as transformações que vêm se
avolumando nas próprias bases da possibilidade de pensar um sujeito na esteira
das diversas tradições? Para nós, a questão está exatamente aí. O que, neste
livro, até agora temos sugerido, embora de forma não explicita, é que é possível
pré-conceber a própria idéia de sujeito desde dimensões éticas de realidade. Não
estamos, evidentemente, falando aqui de um sujeito pensante, de algum tipo de
solipsismo saudosista, ou de uma espécie de subjetividade lógica. Estamos
pensando em algo que subjaz às ações; ou melhor, que as origina, qua as causa.
“Sujeito”, para nós, tem exatamente este sentido. Não estamos, portanto, às
voltas com as famosas críticas estruturalistas, que, ao pretenderem, muitas
vezes, criticar o pólo subjetivo da realidade, nada mais fazem do que
pulverizá-lo em fragmentos ilocalizáveis que, não obstante, permanecem, atuam,
ainda que de forma não explícita no momento onde se quer situar a sede das
ações.
Mas
nada nos impede de abordar a questão desde este viés: até a morte do sujeito tem
um sujeito que a pensa. Este sujeito que a pensa não é um sujeito que é
destilado pelo pensamento de si mesmo, mas como que subjaz a si mesmo enquanto
pensante. Este “subjazer a si mesmo” chamamos exatamente: ética. É outra forma
de explicitar o que já havíamos sugerido. A condição humana está aqui refeita do
susto da finitude; aprendeu porém a lição, não confia mais, ou pelo menos não
confia mais apenas, nas suas
capacidades extraordinárias de intelecção do mundo, de leitura de realidade e de
prospecção de esquemas explicativos da realidade: precisa confiar no inesperado.
Encontra-se o nosso objetivo, desde o ponto de vista da ética, no encontro do esperado com o
inesperado. Existe aqui uma base existencial de explicitação muito difícil,
mas que se faz presente de uma forma semelhante àquela que propusemos ao início
dessas reflexões, quando pensamos as relações entre a ética e a condição humana.
Para que pensemos o sujeito, para que pensemos sentidos possíveis dos termos
“sujeito” e “subjetividade”, é necessário que algo sustente este pensamento, e
esse algo que sustenta este pensamento constitui exatamente a própria
possibilidade contemporânea de concepção da subjetividade. A questão é,
portanto, a seguinte: parece que uma das poucas possibilidades que ainda temos
de pensar a subjetividade em uma estrutura que não seja nem apologética e nem
ingênua a ponto de esquecer os embates críticos com as quais esta categoria teve
de se ver ao longo da história e da cultura do século XX, é exatamente tentar perceber em que sentido
o núcleo da própria subjetividade se dá de forma relacional. Em outros
termos, queremos aqui denunciar o absurdo de uma palavra como
“intersubjetividade”. Inter-subjetividade pressuporia sujeitos
que sós em seus mundos, mônadas isoladas, que acabariam, por uma espécie de
vontade consensual, por estabelecer relações, sentidos recíprocos de
referencialidade. Porém parece-nos que repousa aí, e esta é a tese, uma espécie
de falácia original. Como conceber o sujeito fora da teia da subjetividade? Como
conceber a própria existência fora da teia das existências que se referem e que
lembram a cada elemento logicamente isolado as suas mútuas referencialidades, em
nome das quais se pensa, se diz, se constrói discursos explicativos e se avança
no conhecimento da própria realidade? Por isso, “intersubjetividade”, esta
espécie de tentativa retórica, este salto de uma dimensão que nunca deveria ter
escapado da vista do bom senso, toma para nós ares de absurdo. Ou a
subjetividade é, ou ela não é, e em sendo a subjetividade, não
pode ser senão intersubjetiva.
Em outros termos, o sujeito não se
constitui a partir do momento em que se dá conta do estreito fulcro de realidade
que ocupa, em que pensa, que o manieta. O sujeito existe a partir do momento em
que, estabelecendo relações, percebe que tem de sustentar estas relações, e aí é que
está a dimensão propriamente dita da sua subjetividade: ou a subjetividade é
intersubjetiva ou não é. No caso de não ser, o que temos são “máquinas
desejantes”, são engrenagens anômicas, são figuras-fantasmas, quimeras, reflexos
fugidios, delírios: tudo, menos sujeitos. “Sujeito” significa: sustentar o
próprio tecido da subjetividade; subjetividade significa: compreender, pelo agir
subjetivo, pela âncora subjetiva da própria existência, que não se existe senão
em relação humana, ou seja, ética.
Capítulo 7 – ÉTICA E ESTÉTICA
Será
necessário que destaquemos a que ponto ética e estética estão imbricadas? Em
verdade, não é por acaso que hoje, em termos de discussão filosófica
aprofundada, um dos principais temas estéticos é a sua relação com a ética, e
vice-versa. Trata-se de uma espécie de consciência tardia de uma proveniência
comum.
Estética
significa tratar o mundo de forma diferente do que como mero objeto de
conhecimento; estética significa a possibilidade de supor a possibilidade
concreta de uma estrutura relacional especial com o que não sou eu – se assim
não fosse, não necessitaríamos de obras de arte reais, mas apenas de sua idéia
em nosso cérebro. Estética é, assim, uma espécie sui generis de relação com o outro, que aqui é a obra e, por
extensão, a realidade estética concreta dos existentes, para além de nossa
capacidade fabuladora e representativa.
Se
assim é, entre ética e estética existe mais semelhanças do que pode parecer à
primeira vista, pelo menos para estetas que cultivam formas exclusivamente
idealizantes, ou simbólicas, de uma arquitetônica à qual dão o nome de estética,
pensando estar com isso sendo fiéis a uma tradição muito venerável. Parece-nos
que esta tradição exige sua própria desconstrução para que a estética e, por
derivação, a arte, possa existir; o melhor da tradição estética está na
sobrevivência da sua própria realidade, ou seja, da realidade do sentido estético da realidade. Estética
não é objeto de conhecimento, e aqui, embora não identifiquemos de forma alguma
estética com filosofia da arte, podemos dizer que obra de arte não é em nenhuma
hipótese, enquanto obra de arte, objeto de conhecimento, apenas objeto de
relação, apenas e tudo isso: objeto de relação. Poder-se-ia objetar que
“relação” é uma forma de conhecimento, porém esperamos ter mostrado, pelo estilo
de nossa argumentação até agora, a que ponto existem claras e sutis nuances que
diferenciam estas duas estruturas de abordagem da realidade. Relação vai além do conhecimento;
relação está antes do conhecimento; relação também pode até mesmo ser
conhecimento, mas relação não se define pelo conhecimento. Ninguém considerará
que sua apreciação de uma obra de arte, que a relação que estabelece com uma
obra de arte, um quadro, uma composição musical, ou uma poesia, ou uma grande
obra literária, se dá porque conhece,
apenas considera, muito lucidamente, que, em conhecendo, estabelece uma relação.
Estamos aqui exatamente propondo, mais uma vez, uma espécie de subversão
hierárquica. Não é porque conhecemos uma obra de arte que sabemos apreciá-la
como uma obra de arte, mas é porque a obra de arte está para além dos limites esquematizantes do mero
conhecimento e obriga a uma estrutura relacional de comunicação, de diálogo, que
a obra de arte é obra de arte, e que com ela nós podemos nos relacionar. No
entanto, paradoxalmente, parece-nos que a relação com a obra de arte, antes de
ser uma relação estética, é mesmo uma relação ética. Como chegar a uma obra de
arte sem respeitá-la? Como chegar a uma obra de arte sem uma concepção prévia de
que ainda não a apreendemos, ou melhor, sem considerarmos a inutilidade de uma
idéia tal como a “apreensão” da obra de arte? A obra de arte verdadeira, tal
como o ser humano, é refratária a apreensões, ainda que hajam ardilosas
apreensões intelectuais que, no encalço de sua pretensa “essência”, dispam-na de
sua espessura de realidade e pretendem haver se apoderado de seu sentido. Isto é
falacioso, pois o sentido não está no conhecimento, e sim, exatamente, na
relação. A quase comutabilidade das duas estruturas relacionais – vital e
estética – se anuncia aqui. Este tema está, de alguma forma, presente em muitas
reflexões, não apenas estéticas, mas principalmente nelas, desde a consagração
deste termo a partir do século XVIII.
Não é
por acaso, por outro lado, que a estética, enquanto disciplina filosófica, se
tornou uma espécie de prima pobre da ontologia, da gnosiologia, etc. É porque
ela questiona, pela sua própria proposição original de uma outra estrutura de
realidade, ou de concepção de realidade, onde a relação é privilegiada em
detrimento da objetificação, que ela é muitas vezes intolerável a modelos de
pensamento que tem na objetificação o seu sentido de substância mais profundo.
Não existe assim, nesse sentido, estética sem ética. Porque a ética, nesse
sentido exatamente, é o fundamento da possibilidade da percepção estética da
realidade.
Poderíamos
ainda pensar que não existe ética sem estética, pois, de alguma forma, toda
relação estabelece uma espécie de contato, que poderia eventualmente ser até
mesmo chamado de “artístico”, com a realidade, uma espécie de recrudescimento de
dimensões sensíveis que normalmente estão soterradas pela instrumentalidade e
racionalidades acostumadas a tratar objetos, sentidos de objetos externos, como
escravos. Neste momento, porém, não queremos ir tão longe. Por hora, basta-nos a
seguinte constatação: ética e estética, estética e ética: comutações possíveis
que abrem novas chaves de compreensão do real, para além de sua objetificação.
Eis aqui uma das grandes questões que hoje se pensa em termos de filosofia e
cultura contemporânea, questão que surge pela crescente importância que vimos
aprendendo a atribuir à relação respeitosa com a realidade.
Capítulo 8 – ÉTICA E VIDA
Um dos
campos mais estudados e mais importantes das éticas aplicadas atuais, é
exatamente a bioética. Não trataremos aqui da bioética enquanto uma disciplina
filosófica, mas trataremos antes e, de uma forma algo propedêutica, da ética da
bíos, ou seja, da ética da vida
enquanto fundamento, inclusive, para poder ser pensada a bioética. Pois, se
aquilo que temos desenvolvido até agora faz algum sentido, como este sentido
poderia se situar fora das questões vitais? É evidente que já fizemos referência
implícita a este aspecto nos capítulos que antecedem a este; todavia, aqui se
trata de ressaltar devidamente esta dimensão por si mesma. Não existe ética morta, ética de coisas
despossuídas de seu ser ou de esquemas tão formalizados que são absolutamente
vazios. A ética é uma relação da vida com
a vida, é uma reconstituição radical – referida às raízes – das
possibilidades de revitalizar a vida. E, assim, de uma forma apenas
aparentemente reducionista, poderíamos sugerir que não existe ética que não
seja, a rigor, uma bio-ética. Não
existe ética sem bio-ética, nem bio-ética sem uma base de compreensão ética da
realidade como tal.
Por
outro lado, destaquemos que não existe elemento de realidade que não responda à
relação, como bem sabem, por exemplo, os artistas; é uma espécie de vida da
própria realidade, é uma vibração que se estabelece a partir da estrutura
relacional. Naturalmente não estamos aqui sugerindo uma espécie de panbiologia,
pan-biologismo inconseqüente ou indiferenciado, que acabasse por equiparar a
dignidade de todos os seres umas às outras. O que estamos, sim, a sugerir, é
que, no próprio núcleo do pensar ético, existe já um elemento de bíos, e esse elemento é revitalizado,
potencializado, no momento em que as questões, por exemplo, da bioética, são
ressaltadas e tratadas com a dignidade que merecem e exigem.
Não
existe, nem pode existir ética fora da vida. Vida é sentido de vida, de agir;
ética é agir com sentido de vida. Há uma inter-relação entre todas essas
dimensões. Há uma espécie de canal comunicante que une todas essas dimensões,
aparentemente excessivamente díspares, em uma teia de sentido. Por isso, não nos
parece necessário insistir, neste momento, na pertinência evidente do trato das
questões da ética no que se relaciona especificamente à sua aplicação à vida.
Parece-nos esta constatação de tal forma evidente, que a simples idéia de
negá-la em algum tipo de formalismo, se torna mais uma vez uma espécie de
quimera, ou uma obliteração do próprio pensamento, da vitalidade da
racionalidade, pela transformação da racionalidade em Razão violenta e
totalizante, ou seja, com a vocação da morte. Que isto se verifique amiúde nos
mais variados campos da cultura contemporânea, e em estratégias geopolítica de
nações poderosas, nada mais faz do que justificar os esforços que são
necessários para que a unidade entre ética e vida se torne e permaneça tão clara
quanto possível.
Capítulo 9 – ÉTICA E FILOSOFIA
Não
parece ser muito difícil perceber, neste ponto de nosso itinerário, em que
medida ética e filosofia estão imbricadas. Como filosofar sem viver? Como viver
sem a base ética do viver? Existe vida isolada da vida? É evidente, pelo que
aqui colocamos, que tal idéia pertence a uma época de pensamento que
compartilhava de crenças com outras estruturas lógicas que reduziam o universo a
uma espécie de conjunto de mônadas, de poeiras cósmicas que, flutuando ao acaso,
acabavam por ser organizadas e hierarquizadas pela todo-poderosa razão
ordenadora. É passado o tempo, no dizer de Adorno e Horkheimer, de considerar a
filosofia como a arma principal de uma razão que gostaria de transformar o
universo num “gigantesco campo de caça”.
Filosofia
tem hoje o toque da humildade; sem isso, está desnaturada, está deslocada de seu
próprio sentido e seu eixo entra em um processo de rotação autodestrutivo.
Filosofia não é uma dimensão estática da realidade. Filosofia, no sentido que
aqui estamos privilegiando, é a consideração profunda, como realidade eminente,
dos liames vitais, dos liames relacionais, que unem, aproximam e afastam, seres,
partículas, existências, sentidos, uns dos outros. É neste sentido que podemos
aqui falar em “ética como filosofia primeira”. Pois dela depende a própria idéia
da filosofia pensar a si mesma. Ética
como filosofia primeira não é uma apologética, ou uma prescrição formal de
um pensamento que quer chocar pelo inusitado. Ética como filosofia primeira
significa, simplesmente, a reordenação de elementos de importância evidente que,
por uma espécie de errância da razão imatura, acabaram se afastando de suas
próprias referências mais originais e, simultaneamente, de seus destinos mais
próximos. Ética como filosofia primeira significa nada menos do que pensar tendo
consciência (e trazendo esta consciência inequivocamente ao discurso) de que,
por circunstâncias que não podemos definir a priori, mas que nos constituem
enquanto, exatamente, seres conscientes da condição humana, não podemos
filosofar sem estarmos em processo de construção de uma estrutura relacional com
tudo, absolutamente tudo, o que nos cerca. Ética como filosofia primeira
significa pensar a realidade desde o ponto de vista do sentido que a realidade
tem para nós, e do sentido que nós temos para a realidade. Portanto, filosofar
para além de todo e qualquer pensamento de neutralidade, de toda e qualquer
fórmula equalizadora e de toda e qualquer tautologia que, por sedutora que seja,
não passa na verdade de uma totalização violenta das potências intelectuais do
ser humano. Ética como filosofia primeira significa que a filosofia pode ser propriamente filosofia, porque sabe onde
assenta o fundamento, as origens de seu interesse; não os desloca para
categorias vagas e indefiníveis ou para elementos imponderáveis, não os dilui no
inusitado, não se detém nas dimensões de incompreensão do que não seria nada
mais do que algo incompreendido. Compreende a incompreensão porque se relaciona
com a alteridade. Compreende que não compreende tudo, e essa é sua compreensão
primeira e última.
Ao fim
da filosofia, ao fim do nosso discurso, a realidade, contrapondo-se, com sua
lógica, à nossa lógica, pode dizer não; mas não caímos, aqui, em algum tipo
de dualidade lógica. Estamos, sim, numa espécie de criação quase interpessoal
entre nós e o que não é nós. Este é, portanto, o sentido e a razão do título
deste livro. Ética como fundamento significa: filosofia que sabe onde assenta seu fundamento. E filosofia
não diz respeito a um conjunto abstrato de conceitos, ou a algo, como se diz
popularmente, com o qual e sem o qual, tudo permanece tal e qual. Filosofia
significa a conseqüência máxima do
questionamento da obviedade, da crítica da realidade[5].
Filosofia é a positivação da crise que surge quando percebemos que não estamos
sozinhos no mundo. Filosofia é o que surge quando conseguimos ordenar as nossas
energias, em função do fato de que ousamos quebrar os infinitos reflexos da sala
infinitamente iluminada da especulação, no qual é tão confortável permanecer,
mas que, pela própria visão de infinito, assume a dimensão imensamente falaciosa
da maior de todas as quimeras. Filosofia significa, igualmente, a subversão da
violência. Criticar não significa penetrar à força nas realidades, dissecar
estruturas, descarnar substâncias. Filosofar significa auscultar a vibração de
sentido daquilo que não somos apenas nós. Filosofar significa: hipotecar
confiança no fato de que existe algo de sólido para além de nossos sonhos, e que
é exatamente esta solidez que alimenta nossos sonhos.
Por
isso, ética e filosofia, filosofia e ética são, de certa forma, em um sentido
preciso, que aqui não cumpre explicitar com mais profundidade, praticamente
intercambiáveis em seu fundamento. Não compreendemos filosofia senão desde o
ponto de vista deste fundamento. Não compreendemos ética senão no exercício
propriamente dito da filosofia. Um saber que se inclina ao saber aqui e agora, e que sabe que este saber assenta sobre algo
que não é ele. Só sei algo que antes não sabia, só sei algo que está para além
de meu pré-saber, só sei algo quando me relaciono concretamente com o que sei.
Portanto, temos já aqui uma derivação sofisticada e, em princípio, de difícil
compreensão, da própria idéia de filosofia. Filosofia como relação, ou seja,
filosofia como ética, não é uma possibilidade a mais de pensar a filosofia, mas
é a filosofia que pensa a si mesma com os pés no chão da sua própria origem,
vertida à sua origem, sem esquecer da construção do sentido de seu futuro.
Capítulo 10 – ÉTICA E JUSTIÇA
Chegamos
ao fim de nossa breve jornada teórica pelas raízes da ética tal como a
compreendemos. Porém, a ética, por sua própria natureza de encontro com o que
“está além” dos limites do meramente razoável e bem-comportado, ou, o que dá na
mesma, do meramente bem-ordenado, exige o que está para além da sofisticação da
filosofia, refazendo seus passos e sustentando o encontro com o real, por mais
inusitado que este se apresente. E mesmo pelo caminho interior da própria
filosofia é tal fato claramente perceptível, como procuramos indicar no capítulo
anterior. Este fecho é, portanto, uma espécie de convite para, no crivo agudo da
existência vivida, pensarmos o que não
cabe no pensamento.
Estamos
acostumados a conceber o pensamento filosófico desde a famosa promulgação
aristotélica da admiração, do “Thaumazein”. Agora gostaríamos, porém, de
ajuntar, ao “Thauma”, o “Trauma”. Gostaríamos de pensar, neste momento, o
próprio fundamento do pensar, desde um ponto de vista que não é suficientemente
considerado, quando se pensa no conjunto da filosofia e, por derivação, das
ciências que dela provêm. Gostaríamos de pensar o momento onde nossa respiração
é suspensa pela suspensão da própria
vida que ocorre, por exemplo, na percepção de uma situação de injustiça cometida, algo que nos
traumatiza, algo que nos revolve internamente, algo que desordena as nossas
lógicas e faz com que a própria idéia de justificar o acontecido apareça como indecente[6].
Talvez seja este um dos inícios do pensamento, talvez seja isto que tenha dado
origem ao próprio pensamento: o insuportável que, ao trazer à nossa consciência
a consciência da precariedade da existência, nos interdita a paz. Pois é
possível pensar também a filosofia como indignação. Indignação frente ao fato de
que a realidade é tratada indignamente. Indignação frente à percepção do fato de
que temos sido indignos das expectativas que, de alguma forma, se abrem a nós
pela promessa de futuro que a nossa vida propõe. Indignação frente às
habilidades do nosso intelecto em tecer teias justificativas para o
injustificável. Indignação que se coloca como origem da necessidade de superar,
em todo o sentido possível, o elemento de indignação, ou seja, de indignidade,
que aqui é correlato ao tema da não-vida, e, portanto, ao tema da não-ética. Ora, um ponto de partida para
pensar essa estrutura é, desde o ponto de vista do trauma da injustiça cometida, a questão da justiça como fundamento da
estrutura das relações humanas.
O tema
da justiça não é um tema da filosofia política. O tema da justiça é uma
ansiedade literal de todo e qualquer pensar. Apenas, e aí está a grande questão,
é possível utilizar o próprio pensar para camuflar este tema em meio a outros
temas. Queremos aqui, porém, seguir na direção inversa; queremos ressaltar a que ponto este tema é central e,
simultaneamente, culminante nas reflexões filosóficas e científicas, por
decorrência, por definição e por origem que não são, como esperamos haver
mostrado ao longo dos capítulos anteriores, senão éticas.
Mas, a
rigor, qual o sentido do mundo sem a nossa fidelidade na busca da justiça?
Parece-nos não haver na história do pensamento humano nenhuma grande obra que
tenha ignorado este fato, esteja ele presente de forma explícita, ou esteja ele
implicitamente presente nos conteúdos que se desenvolvem. O ser humano, a
condição humana, é, antes de tudo, nesse sentido, ansiedade por justiça. Ansiedade por ser
justamente tratado. Ansiedade que, em termos relacionais, significa ansiedade
por tratar justamente o que não é si mesmo, para que si mesmo tenha sentido. Justiça,
portanto, não é – repetimos e acentuamos – uma categoria da filosofia, ou da
ciência jurídica, ou das ciências sociais, como qualquer outra categoria, mas é
o essencial da própria possibilidade
da filosofia, das ciências jurídicas, das ciências sociais e humanas, e da
Ciência em geral.
Justiça
significa assim, aqui, a base possível do próprio pensamento e, simultaneamente,
o seu telos, sua idéia reguladora
máxima e definitiva. Justiça significa a exuberância da vida que se encontra
consigo mesma. Porém, justiça não pode ser, a rigor afirmada como realização
plena no presente do indicativo. Justiça é uma ansiedade, é uma dimensão de
construção que se constrói com tijolos infinitamente pequenos, porém
infinitamente recorrentes, incansáveis, sólidos e delicados. Justiça é o objeto
da ciência e da filosofia, porque é o conteúdo da própria humanidade, sem o qual
a humanidade torna-se vazia. Como conceber a condição humana sem a ansiedade por
justiça? Há quem consiga pensar fora da ansiedade por justiça? Parece-nos que,
levada a argumentação neste sentido, não há pensamento e construção humana que
não seja expressão, mais ou menos bem sucedida, da reparação desta ansiedade por
justiça.
Mas,
se assim é, como pode o tema da justiça muitas vezes estar deslocado a esferas
quase indivisáveis da própria especulação filosófica e científica? Não temos
tempo agora para tratar da genealogia deste espantoso desvio[7].
Interessa-nos muito mais ressaltar o fato de que a justiça pretende se
constituir, enquanto negação explícita e inequívoca da injustiça, em uma espécie
de retórica ética máxima, uma eloqüência da vida. A vida eloqüente é a vida que
exige justiça. Neste sentido, temos aqui uma espécie de terminação provisória
das reflexões que até agora desenvolvemos. Partimos de uma abstrata idéia de
condição humana, procuramos aprofundá-la paulatinamente, passamos por diversas
estruturas, camadas, sentidos de realidade que configuram o dia-a-dia da própria
humanidade e das próprias reconsiderações a que o ser humano está sujeito na
nossa época contemporânea, e culminamos esse pensamento retomando algo
infinitamente original e originante, e infinitamente distante, a ansiedade
absoluta pela justiça realizada, fundamento de toda ação humana. E assim
podemos, se admitirmos tal lógica de desenvolvimento, supor que a ética é
exatamente, e nada mais nem menos, do que isso: vontade de justiça em
realização, justiça em todos os sentidos, justiça para com o que não é nós,
justiça para com o outro.
[1] Cf. nosso Totalidade & Desagregação – sobre as
fronteiras do pensamento e suas alternativas, Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996,
especialmente p. 15-29.
[2] Cf. nosso Sobre a construção
do sentido – o pensar e o agir entre a vida e a filosofia, São Paulo,
Perspectiva, 2003.
[3] Esta é a grande dificuldade, por exemplo, de
aplicação de teorias da filosofia política importadas ao contexto brasileiro,
ignorando as especificidades inconfundíveis de nossa sociedade e seus conflitos
de origem. Cf. nosso O Brasil
filosófico, São Paulo:
Perspectiva, 2003, p. 15-34.
[4] Cf. nosso Totalidade & Desagregação – sobre as
fronteiras do pensamento e suas alternativas, op. cit., p.
15-29.
[6] Cf. nosso ensaio “O delírio da solidão: o
assassinato e o fracasso original”, in: SOUZA, R. T. Sentido e Alteridade
– Dez ensaios sobre o pensamento de E. Levinas, Porto Alegre,
EDIPUCRS, 2000, p. 23-43.
[7] Tratamos deste tema em nosso ensaio “Da
neutralização da diferença à dignidade da Alteridade: estações de uma história
multicentenária”, in: SOUZA, R. T. Sentido e Alteridade
– Dez ensaios sobre o pensamento de E. Levinas, Porto Alegre,
EDIPUCRS, 2000, p. 189-208.
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