ÉTICA E POLÍTICA – algumas reflexões introdutórias
Ricardo Timm de
Souza
I
A Ética não é meramente
um elemento a mais a ser levado em consideração quando se pensa sobre a questão
filosófica fundamental: a condição humana. Em verdade, a Ética é o fundamento da
própria possibilidade de pensar o
humano. Essa afirmação pode parecer estranha à primeira vista, mas esta
estranheza se desfaz muito rapidamente, quando os termos definidores da questão
são examinados com propriedade filosófica. Pois a própria idéia de pensar pressupõe a
Ética. Não existe pensamento fora de alguém que pensa, e esse alguém não é uma
mônada fechada em si mesma, mas, de algum modo, o fruto das relações – seja no âmbito de
sua gênese biológica (ninguém nasce senão de seus pais), seja em termos de sua
geração social e histórica (ninguém existe fora de uma cultura e de uma língua
que o acolhem, ou fora de estruturas materiais que o sustentam). Ser humano é
provir e viver na multiplicidade do humano. E não qualquer multiplicidade, mas
multiplicidade qualificada ou, exatamente, em termos filosóficos, multiplicidade ética, do agir de uns com relação aos
outros e dos sentidos deste agir.
Pois, para que a gestação tenha chegado a um bom termo, é necessário que nem nossa
mãe, nem todos os que a apoiaram, houvessem agido de forma má, pelo menos não a ponto de impedir
nosso desenvolvimento. O mesmo se dá, evidentemente, em cada um dos momentos de
nossa vida, não apenas daqueles por nós facilmente percebidos como decisivos ou
extremamente importantes, mas igualmente naqueles, aparentemente coloquiais,
aparentemente irrelevantes, que constituem propriamente o dia-a-dia de nossa
vida, a teia dos momentos na qual vivemos em nossa cotidianidade. Em suma: em
todos os momentos de nossa vida, define-se em cada situação a continuidade de
nossa existência, não através de atos indiferentes, mas na especificidade única
e não-neutra de cada ato. Um ato qualquer, isolado, pode tanto fazer viver como
fazer morrer; embora tal coisa seja claramente perceptível nos grandes instantes
decisivos da vida, onde a vida e a morte se encontram – tanto um ato heróico de
sacrifício por outrem como um ato que mata outrem, tanto uma intervenção
cirúrgica bem sucedida como a destruição de aspectos da vida – na verdade tal
fato se dá, de um modo ou de outro, em
todo e cada um dos instantes da existência. Não há instante isolado, neutro
ou indiferente para a vida; há apenas instantes que conspiram, ou para a
continuação e promoção da vida, ou para sua corrosão e destruição. E isto por um
motivo muito simples: o ser humano é um
ser não-neutro por excelência. Essa não-neutralidade é simultaneamente, em
termos filosóficos, o resultado da reflexão original sobre a condição humana e a possibilidade de tal reflexão.
Ética é, assim, no sentido que aqui propomos, o fundamento da condição humana que vive e
medita sobre si, sobre seu lugar,
sobre sua casa, sobre seu mundo; ética é, neste sentido,
essencialmente, uma questão eco-lógica (de oikos: casa, lugar, e
logos; reflexão sobre). E, assim sendo, ética é o fundamento de todas as
especificidades do viver, em suas mais complexas relações e derivações, das
ciências e da tecnologia, da história das comunidades e da própria
filosofia.
II
A partir do que vimos
anteriormente, podemos depreender facilmente que temos, aqui, uma semente de
algo como uma racionalidade ética,
uma racionalidade que tem sentido na sua dimensão ética propriamente dita, uma
racionalidade que não existe sem que a sua dimensão ética seja a própria medula
do que de racional ela possui. Por que? Porque “racionalidade” significa aqui se
relacionar para além dos reflexos que o pensamento é capaz de destilar para si
mesmo. Racionalidade significa relacionar-se com a realidade, e a realidade não
está presente de forma concreta e absoluta no interior da lógica do próprio
pensamento que pensa: há sempre algo para além daquilo que somos capazes de
pensar, e, se assim não fosse, teríamos a onisciência, e não necessitaríamos
aprender nada. Portanto, é com base nesta dimensão de racionalidade ética que
podemos retornar à dimensão da ética como fundamento das relações humanas,
aquilo que aqui, neste livro, temos considerado referência central para toda a
nossa argumentação.
Interessa-nos neste
momento pensar introdutoriamente a relação entre ética e política. Qual a
relação entre ética e política? Evidentemente, muito se tem falado sobre isso. O
que acontece, porém (e muitas vezes trata-se de um elemento invalidante na
aproximação destes conceitos), é que há uma tendência muito forte de separá-los
epistemologicamente. Isso tem lá suas razões técnicas, filosóficas e
sociológicas muito consideráveis. Todavia, podemos talvez, a um exame mais
profundo das questões, ousar superar os pudores científicos que normalmente
classificam tais disciplinas, ou tais âmbitos de conhecimento, em campos tão
separados. Pois vejamos: o que é a política senão a arte de viver na pólis, na cidade, no mundo? O que é a
ética, no sentido que aqui tratamos, senão exatamente a mesma coisa?
Evidentemente, estamos falando de uma forma aproximada; não nos interessa
confundir ética e política, interessa-nos mostrar como a “ética”, na verdade, é
inconcebível sem uma vida na cidade, por que a vida na cidade (e por “cidade”
entendemos aqui a configuração de uma comunidade humana qualquer) significa
exatamente a concreção das relações humanas. Assim como “política”, em termo
próprio, é inconcebível sem relações éticas, pois “política”, viver na pólis,
conceber, criar, desenvolver e preservar a pólis, pressupõe igualmente relações
humanas. Não adianta concebermos tecnicamente a idéia de política, e então nos
preocuparmos em apor a esta idéia, ou a esta concepção, dimensões éticas
reguladoras. Não adianta partirmos do “status quo” e, em nome do equilíbrio de
uma filosofia política que tente contentar interesses diversos e geralmente
contraditórios, estabelecer estruturas intelectuais de equilíbrio e de mediania,
que acabem por fracassar em suas intenções por ignorarem lógicas reais de poder
ou por pretenderem que convivam pacificamente interesses inconciliáveis, porque
mutuamente excludentes em termos de uma convivência ético-política sadia[1].
Temos é que pensar já desde o início
a possibilidade da não-separação destas duas dimensões. O fruto desta cisão de
origem entre ética e política nada mais é do que aquilo que podemos observar
diuturnamente, sem entender, normalmente, suas razões: estruturas de violência que se
reproduzem infinitamente. Ou seja: viver na cidade e não viver eticamente
significa aquilo que temos visto a cada dia nas nossas grandes cidades, bem como
na situação micro-política e macro-política do mundo. Porque se pensou que se podiam
estabelecer, cientificamente, estruturas políticas que, por alguma espécie de
geração espontânea, dessem lugar “naturalmente” a relações éticas necessárias, é
que vivemos os atuais dilemas (como exemplos contundentes, a violência e a
corrupção), tanto em nível próximo, micro-geográfico, como na macro-geopolítica
que governa o mundo e que nos tem levado a impasses de dimensões
extraordinárias. Todos estes temas serão detalhados no capítulo referente à
responsabilidade social. Mas, neste momento, é possível destacarmos o fato de
que conceber um lugar onde pessoas vivam sem que esteja presente de forma muito
clara, já na estrutura desta concepção, a dimensão relacional das pessoas que ali viverão
(e relacional quer aqui dizer eticamente sustentável), significa uma
quimera de proporções muito maiores do que aparenta ser, caso estejamos vivendo
apenas no mundo das considerações pragmáticas derivadas de postulados
intelectuais. É por isso que filosofias políticas que têm como base de
fundamento, ou como pano de fundo, ou horizonte de sentido, meramente o
reequilibrio de dimensões desequilibradas do ponto de vista de macro-políticas e
de ética enquanto relações humanas concretas, diárias, tendem necessariamente a
fracassar. O seu cabedal teórico acaba sendo seqüestrado pelo lado que dispõe de
maior poder de sedução intelectual, ou que é capaz, por exemplo, de justificar a
injustiça em nome da ordem. As filosofias políticas de equanimidade econômica,
de redistribuição de bens, de equilíbrio de direitos, são todas muito plásticas
na sua apresentação; pecam porém, por haverem ignorado a origem comum da própria idéia de filosofia como
o núcleo ético de sua geração e da própria idéia de política como um lugar onde
economicamente (ou ecologicamente) pessoas se relacionam concretamente. Relações
desequilibradas não podem ser corrigidas por paliativos; a sociedade deve ser
refundada sobre bases humanas, e não sobre bases procedimentais que pretendem
contemplar interesses que oscilam conforme a capacidade de negociação ou a força
de uma das dimensões disputantes. Por isso, ética e política, como ética e
ecologia, estão intrinsecamente imbricadas. Pensar uma nova sociedade sem pensar
nessa imbricação é pensar uma quimera. Tentar corrigir dilemas éticos com
soluções políticas paliativas, ainda que filosoficamente aparentemente bem
organizadas, não passa de uma postergação daquela questão que a rigor se propõe,
ou seja, a questão de como refundar a possibilidade humana da convivência em um
mundo com dilemas sócio-políticos gigantescos, desafiadores, e que levarão, caso
não sejam solucionados, à destruição de sua própria estrutura de sobrevivência,
inviabilizando não só a vida dos contemporâneos como também a das gerações
futuras.
Cremos agora, a partir do
que aqui já desenvolvemos, poder propor, inclusive, uma espécie de definição de
política: política é a capacidade de
conceber uma estrutura ética de convivência que permita a cada ser relacionar-se
o mais saudavelmente possível com cada outro ser. Toda e qualquer política
que não contemple exatamente estas dimensões, ou que descure da gravidade que
estas dimensões significam para a sobrevivência da vida na Terra, nada mais são
do que falsidades que estão se substituindo às dimensões concretas da vida, e
cujo futuro pertence ao reconhecimento doloroso do seu fracasso.
[1]
Esta é a grande dificuldade, por exemplo, de aplicação de teorias da filosofia
política importadas ao contexto brasileiro, ignorando as especificidades
inconfundíveis de nossa sociedade e seus conflitos de origem. Cf. nosso O Brasil filosófico, São Paulo: Perspectiva, 2003, p.
15-34.
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